Em Moju, sonho de construção de uma educação antirracista já é realidade

Com uma rica história marcada pela resistência dos quilombos, projeto fortalece identidade e já tem quase 100% dos alunos com autodeclaração racial

Aos 13 anos, Fernanda Caldas da Silva já tem um objetivo profissional: ser educadora física e professora. Ela é aluna do 8º ano na Escola Municipal Antônio de Oliveira Gordo e afirma que a escola mudou sua maneira de ver a vida. “Entendi sobre minhas raízes em trabalhos de pesquisa aqui na escola. Hoje, eu me declaro preta e tenho consciência e orgulho da minha origem”, conta a estudante.

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Com texto de Aline Brelaz e fotos de Paulo Castro.

Esta série especial é uma iniciativa da plataforma Amazônia Vox, realizada em parceria com a Fundação Lemann e Motriz. O Programa Motriz Educação Amazônia conta com o incentivo da Fundação Lemann, Instituto Natura e Porticus.

A escola de Fernanda integra a rede municipal de Moju, no Pará, e apesar de estar localizada na área urbana da cidade, atende estudantes de várias comunidades quilombolas locais. O município, localizado às margens do rio também chamado Moju, tem 30 comunidades quilombolas, oriundas dos negros que fugiram da escravidão e se abrigavam nas áreas de floresta, que ainda rodeiam a região.


Todas as 162 escolas municipais são integradas ao programa desenvolvido pela Motriz, apoiada pela Fundação Lemann, Co-Impact, Instituto Natura e Porticus. Em Moju, o programa desenvolveu o projeto “Caribé”, em alusão ao mingau de farinha de macaxeira, bastante comum na região. A iniciativa trabalha o combate ao racismo e reforça a identidade e a beleza étnico-racial na escola.

Os estudantes negros e indígenas, afetados pelo racismo estrutural, são os que tem a sua trajetória escolar mais impactada, aprendendo menos e evadindo mais da escola. Ações como a autodeclaração são um primeiro e importante passo em direção a construção de políticas educacionais mais equitativas.

Nesse sentido, por meio de encontros de formação, debates e outras iniciativas, o projeto Caribé foca na educação antirracista, atuando com ações e ensinamentos sobre equidade e autodeclaração da identidade dos estudantes, valoriza as manifestações culturais locais, além de viabilizar formação aos profissionais da educação municipal.

Quase 100% dos alunos autodeclarados

Um dos resultados do projeto já é comemorado pelas equipes que atuam diretamente nas ações dentro da Secretaria Municipal de Educação (Semed). A assessora pedagógica da Semed, professora Larisse Moraes, informa que, em apenas pouco mais de um ano das ações, 99,5% dos estudantes já fizeram a autodeclaração.

A evolução é evidente. Em 2022, a rede municipal tinha 12.595 alunos não declarados. Em 2023, esse número caiu para 11.175 e, em 2024, uma forte queda foi notada com as ações do programa: 1.351 alunos não declararam sua identidade de raça. “Temos hoje um retrato de apenas 0,5% de alunos que ainda não se autodeclaram. Por outro lado, mais de 70% dos alunos se autodeclararam como raça negra, que é pardo ou preto. Estamos agora trabalhando na qualificação, para o aluno se perceber enquanto aluno preto ou indígena, por exemplo. A parceria com as ações promovidas pela Motriz são fundamentais para alcançarmos esse resultado tão animador”, revela Larisse.

Para isso, foram desenvolvidas ao longo do ano passado atividades com maior envolvimento de alunos, divulgação de banners nas escolas, formação para secretários escolares, mutirão de matrícula e até filtros no instagram para promoção da autodeclaração.

“Todas as disciplinas aqui na minha escola trabalham a educação antirracista. Nossa professora de Língua Portuguesa, Flávia Helena, faz muitas reflexões com os alunos. Antes de estudar aqui na AOG eu não tinha muita noção sobre autodeclaração, nem equidade. O projeto Caribé ajudou muito a mim e meus colegas”, diz a adolescente Fernanda Caldas.

Ela lembra que, antes do entendimento sobre sua origem, ela se considerava parda. “Era assim que eu me autodeclarava. Hoje, entendo que todos temos direitos e que o preconceito ainda é muito grande na sociedade, por isso precisamos trabalhar para combater isso”, afirma a aluna.


Da mesma forma, o estudante Eduardo Cunha da Natividade, 14 anos, do 8º ano na AOG, detalha que o Projeto Caribé ajudou muito os estudantes pretos e pardos a se autodeclarar. Mas, também afirma que os ensinamentos na escola o ajudaram a melhorar sua visão sobre combate ao racismo. “Eu já sofri racismo na escola e fora daqui. A diferença é que aqui na escola, a direção e coordenação atuam rapidamente e conseguem resolver a situação, baseado no protocolo”, conta o estudante, que também sonha em ser educador físico.

Kit antirracismo é parte do material pedagógico

Uma das ações do Projeto Caribé na rede municipal de Moju foi a elaboração de um material pedagógico que inclui o “Protocolo de orientações em casos de racismo nas escolas” e um banner informativo, que ensina os estudantes a se reconhecerem como brancos, pretos, pardos, amarelos ou indígenas. O kit foi entregue em todas as escolas municipais. Mais do que deixar o material impresso, a comunidade também recebe orientação sobre o processo a ser seguido para alcançar na totalidade uma educação antirracista.

O protocolo explica à comunidade escolar o que é racismo; quais práticas e comportamentos são considerados racistas; especifica as leis brasileiras sobre racismo; cria um fluxograma de ação em casos de vítimas de racismo, sejam estudantes ou quaisquer servidores das escolas, entre outras ações. Por fim, o protocolo aponta um glossário antirracista, orientando sobre palavras como: denegrir, criado-mudo, mulato e outras, que devem ser substituídas, pois têm conotação pejorativa e preconceituosa.


As professoras Sara Amaral e Débora Gaia, respectivamente gestora e coordenadora pedagógica da Escola Municipal Josino Ferreira, conhecida como Escola Municipal “Seu Jó”, são o que se pode chamar de apaixonadas pela educação pública.

A unidade escolar está localizada na comunidade quilombola Vila Jupuúba, às margens da rodovia estadual PA-150, distante 20 minutos da sede do município. “Buscamos fazer uma educação diferenciada com os alunos. Trabalhamos a educação antirracista o ano inteiro”, conta a gestora.

“Nosso trabalho ajuda no autorreconhecimento dos estudantes e nesse aspecto, o Projeto Caribé veio pra nos ajudar a dar mais visibilidade e expandir nossas ações para toda a comunidade escolar”, informa a coordenadora pedagógica.

No final de novembro, a Escola Seu Jó realizou a V Mostra Cultural em Alusão à Consciência Afro-indígena, com o tema: a luta, a força, a cultura e a identidade dos povos afro-indígenas. Como explicaram as professoras, foi um dos pontos de celebração das ações promovidas durante todo o ano com estudantes, professores, pais e mães dos alunos, além dos outros funcionários da escola.

A mostra exibiu artes plásticas feitas a várias mãos, que se unem entre toda a comunidade escolar para a exposição dos elementos da cultura quilombola e indígena da região, combinando com apresentações de grupos de dança e barracas com comidas típicas, movimentando a escola e gerando ainda maior integração com a comunidade como um todo.

Antonete dos Santos Borges é quilombola e mãe da estudante Agatha Sophia dos Santos Borges, 15 anos, do 9º ano da Escola Seu Jó. “Aqui a educação antirracista é mais específica”, garante a mãe, que se diz orgulhosa da consciência adquirida pela filha com as ações do projeto Caribé. “Eu nunca tinha ouvido falar no conceito de autodeclaração. Mas, aqui a equipe de professores é muito preparada e, até em casa, minha filha melhorou na questão de respeito, de autoestima”, explica Antonete.


Com autoestima também elevada, Antonete afirma que também sentia que era preconceituosa contra ela própria, pela cor da pele escura, pelo cabelo crespo. “Hoje eu me aceito, gosto do meu cabelo e asseguro que é muito bom trazer os filhos para uma escola que tem uma educação baseada no respeito e no combate ao preconceito”. Ela conta que sua filha, apesar de muito tímida, melhorou muito sua postura. Além de Agatha, ela tem outro filho, Jeferson Lucas, 9 anos, estudante da Escola Municipal Vila da Paz, também na comunidade quilombola. “Já sofremos muito preconceito, mas hoje eu sei que existem leis que nos amparam e ensino isso aos meus filhos”, comenta.

Uma vida dedicada à educação antirracista

Apesar do êxito das ações de educação antirracista do programa Plantar com o projeto Caribé, há décadas profissionais de educação do município já atuam com este propósito, porém de forma menos abrangente.

“O Projeto Caribé nos deu uma dimensão muito maior. A parceria com a Motriz nos proporcionou uma espécie de megafone das ações. O programa veio nos fazer ouvir e nos trazer ferramentas que não tínhamos”, explica a coordenadora de Educação das Relações Étnico-Raciais, Waldirene dos Santos Castro, conhecida como professora Wal, educadora pública há mais de 40 anos.


Ela explica que para superar os dados negativos na educação é preciso maior entendimento de que se deve identificar e incluir o conhecimento dos povos tradicionais e originários para maior nivelamento do aprendizado.

Ela destaca que há atualmente na rede municipal (ensino fundamental) 352 alunos no programa de recomposição de aprendizagem e que destes, apenas 15 se autodeclararam brancos. O número, segundo a professora, demonstra a necessidade de ações de nivelamento para alcançar a tão sonhada equidade na educação pública, com redução das desigualdades de aprendizagens entre estudantes brancos e não brancos, o que ainda é comprovado nos resultados das avaliações em larga escala.

A professora ressalta que, em 2024, completam 21 anos da aprovação da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica brasileira e também inclui o Dia da Consciência Negra no calendário escolar.

Porém, ainda há muitos desafios que os profissionais de educação enfrentam para repassar a história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, sua cultura e o papel do negro na formação da sociedade. “É por tudo isso que essas ações são tão fundamentais para a sociedade como um todo, começando na escola, na base”, afirma.

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