Em Manicoré, escolas resgatam ancestralidade indígena e cultura amazônica

Em um território repleto de diversidade étnica e tradições, mas com baixa autodeclaração entre indígenas, professores e alunos de Manicoré unem forças para resgatar, valorizar e ensinar a rica herança

“Eu nasci na comunidade São José, na Ilha da Onça”, conta a professora da rede pública municipal de Manicoré, Rosineire da Silva, do povo indígena Munduruku, no Amazonas. “Fui para a cidade aos cinco anos, mas, no início, não me reconhecia como indígena e, por isso, não me declarava como tal”, afirma.

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Com texto de Cley Medeiros e fotos de Aline Fidelix.

Esta série especial é uma iniciativa da plataforma Amazônia Vox, realizada em parceria com a Fundação Lemann e Motriz. O Programa Motriz Educação Amazônia conta com o incentivo da Fundação Lemann, Instituto Natura e Porticus.

O município de Manicoré, cercado por Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs), tem apenas 6% dos estudantes do 1º ano ao 9º do ensino fundamental que se declaram indígenas, enquanto esse percentual em todo município é de 15%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em Borba, município vizinho, mais de 28% se declaram indígenas. Em Manicoré, habitam o território diferentes etnias, como Mura, Torá, Munduruku, Apurinã, Parintintin e Tenharim.

“Foi quando ingressei no Núcleo de Educação Indígena da Secretaria de Educação, que passei a reconhecer meu lugar como pessoa indígena, sabendo que somos capazes de ocupar qualquer espaço e contribuir para a educação”, explica Rosineire. Nos últimos quatro anos, a técnica da Secretaria de Educação acompanha a agenda pedagógica de 38 escolas indígenas, e também supervisiona como o conteúdo acerca dos povos indígenas está sendo aplicado nas escolas não indígenas. “Hoje tenho a satisfação de atuar na secretaria, buscando ser uma voz representativa da educação indígena”, compartilha.


Em Manicoré, assim como outros municípios da Amazônia, a autodeclaração historicamente carrega um estigma. Por um lado, o receio do preconceito contra povos indígenas. Por outro, um traço que reforça esse mesmo preconceito: as críticas associadas às políticas afirmativas como cotas ou benefícios sociais.

No entanto, através de formações e discussões, num trabalho diário e de base, incluindo as escolas, essa percepção está mudando. Ao promover o contato entre diferentes grupos e redes de comunidades, o programa Plantar não só fortalece a autoestima dos alunos indígenas, mas também contribui para efetivação da Lei 11.645/08, que estabelece como obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nas escolas a partir da criação de um ambiente de respeito e compreensão mútua.

“Buscamos criar um ambiente de conhecimento e valorização, no qual as pessoas se sintam confortáveis para expressar sua identidade com liberdade”, explica Earlen França, técnica da Semed. Diante do desafio de impulsionar ações que reconhecem o pertencimento ao território, a rede de ensino deu um passo em direção ao fortalecimento da identidade por meio de uma série de atividades educativas para capacitar educadores e gestores.

Uma das formações reuniu mais de 120 técnicos da educação e lideranças indígenas. A equipe da Motriz, em parceria com o Instituto Identidades do Brasil (IdBR), conduziu uma oficina de letramento racial que abordou conceitos como autodeclaração e racismo estrutural, compartilhando com a equipe da Semed estratégias práticas para ampliar a agenda da igualdade étnico-racial em Manicoré.

O encontro promoveu discussões sobre a importância de reconhecer e valorizar a história e presença dos povos originários no contexto educacional local, ressaltando como a inclusão do tema nas escolas pode transformar as experiências e o entendimento cultural das novas gerações.


De acordo com os professores, o diálogo permitiu que educadores compreendam mais a fundo as experiências dos indígenas locais e, assim, pensar em como incorporar esses conhecimentos nas escolas.

O encontro também discutiu o uso do censo escolar para mapear e compreender a diversidade local e a construção de políticas educacionais antirracistas. “Mesmo enfrentando desafios logísticos imensos, que demandam viagens de até um dia, atravessando municípios como Humaitá e percorrendo 180 km, esse trabalho nos permitiu atingir praticamente 100% dos nossos professores, sendo que 90% da nossa rede é rural”, aponta Earlene França.

Pelo programa, foi realizada uma formação de gestores para a aplicação do censo escolar de autodeclaração, promovendo entre pais e alunos o reconhecimento e a valorização de suas identidades. “Essas formações têm sido fundamentais para aprimorar as práticas pedagógicas, capacitando os professores para atuarem de forma eficaz nas salas de aula, onde muitos são os primeiros a levar conhecimento e valorização da identidade para suas comunidades”, diz Rosineire da Silva, coordenadora do núcleo indígena.

Conhecendo a própria história para reconhecer identidades

Inspirada nas contribuições das comunidades indígenas e ribeirinhas, a Secretaria de Educação, com apoio da equipe de implementação da Motriz, organizou o projeto “Resgatar e preservar a história do nosso povo”, que tem promovido atividades que valorizam a identidade cultural de alunos e professores e buscam trazer um ensino mais contextualizado, em diálogo com a rica ancestralidade da região.

O projeto incentiva que as escolas desenvolvam ações para promover a equidade, a história e a memória dos territórios, envolvendo ativamente as comunidades locais no resgate das histórias, dos hábitos alimentares e até mesmo das práticas tradicionais de manejo da terra próprias de cada região.

A participação dos professores é central para a iniciativa, como explica o gestor Raimundo Passos, diretor da Escola Municipal Sagrado Coração de Jesus, na comunidade Democracia, em Manicoré. “A escola realiza atividades em que os alunos investigam a história de suas comunidades e compartilham com os colegas. Por exemplo, nos festivais da escola, as danças e quadrilhas são apresentadas com temas que resgatam a história local”. Segundo ele, a atividade proporciona uma conexão direta entre o presente e as tradições que formam a identidade dos jovens, permitindo que conheçam e valorizem suas próprias raízes.

“Esse projeto é especialmente significativo, pois percebemos que muitos dos nossos alunos desconhecem sua própria ancestralidade,” afirma o gestor. “São momentos que atravessam a sala de aula, fortalecendo o vínculo entre as gerações”, complementa.

Para Mirella Pires da Cruz, de 11 anos, da Escola Municipal Indígena Camaioa, a escola se tornou mais do que um lugar para aprender a ler e escrever. Ela encontra no espaço escolar uma oportunidade de descobrir a história de seu povo e valorizar a cultura local. “Eu gosto de estudar, brincar no intervalo, e também de aprender sobre a história do meu povo. Acho muito importante aprender sobre a cultura do meu povo. Sim, acho que aprender tudo isso é muito bom”, conta Mirella.

A ancestralidade vai à sala de aula

Em comunidades indígenas e ribeirinhas, onde o sentido de pertencimento ao território é profundo, o projeto cumpre um papel especial. A Motriz apoiou a produção de material didático baseado nas vivências locais, gerado a partir das atividades, que tem sido potencializada e servido como base para planos de aula contextualizados, construindo uma educação inclusiva e consciente.


O professor Benedito Félix, da Escola Municipal Camaioa, que pertence ao povo Munduruku, também conduz atividades de resgate cultural inspirado na iniciativa da Secretaria. “Esse projeto é extremamente gratificante. Ele não apenas nos motiva, mas também tem um papel importante na valorização da nossa identidade, mostrando que a educação indígena vai além de arquétipos como arco e flecha. Há uma evolução visível em termos de percepção e valorização da cultura indígena. O projeto já está trazendo frutos que incorporamos na sala de aula, para fortalecer nossa cultura e tradição.”

O cacique Heraldo da Cruz, do povo Munduruku, enxerga o projeto como um elo vital para a continuidade cultural entre gerações. “Para nós, essa iniciativa é importante, pois estamos preservando e passando para as novas gerações — as crianças e adolescentes — a nossa cultura. Nossa cultura sempre esteve presente na nossa vida, nas nossas roças e nos recursos naturais da floresta. Agora eles compreendem isso na escola, de maneira formal”, avalia.

Para a professora Rosineire, o projeto “Resgatar e Preservar” é uma ferramenta essencial na valorização das raízes indígenas dentro da secretaria de educação e das escolas. “Permite que nossos alunos indígenas se sintam valorizados. Com isso, vão além: eles ensinam aos alunos não indígenas a importância de conhecer e respeitar outras culturas. Assim, promovemos a igualdade racial e a valorização de identidades diversas,” destaca.


Professor defende educação diferenciada que valorize a Amazônia

Na comunidade “Democracia”, em Manicoré, vivem mais de 700 famílias. É lá que o professor Raimundo Passos dedica-se a um modelo de educação que vai além do ensino tradicional. Ele acredita que o aprendizado precisa estar intimamente ligado à realidade local e ao meio ambiente. "Para nós, a educação deve ser contextualizada à realidade amazônica, levando em conta o meio ambiente e os desafios locais. É uma educação que busca preparar nossos alunos para cuidar bem de sua 'casa', a Amazônia”, explica.

A escola desenvolve atividades que promovem a leitura, a escrita e as ciências com foco em sustentabilidade. Além disso, eventos culturais celebram e preservam as tradições da comunidade, reforçando a identidade local dos estudantes.

Apesar de hoje ser um educador, o caminho de Raimundo Passos para o magistério não foi planejado. Ele começou sua formação em 1983, em um curso técnico em agropecuária, mas, com a extinção do curso, foi direcionado para o magistério. “Embora inicialmente não fosse meu objetivo, ao assumir o cargo de docente, descobri uma verdadeira paixão pela profissão. Hoje, não me vejo fazendo outra coisa, pois amo trabalhar com pessoas”, relata ele, que já acumula 32 anos de experiência no ensino.

Com o apoio de uma equipe de 12 professores, Passos busca contribuir para o desenvolvimento da comunidade escolar e das seis comunidades vizinhas que enviam alunos para a escola, incluindo Jatuarana, Terra Preta, Aldeia, Santa Erva, Vista Alegre e Panda. “Nossa visão é contribuir para o desenvolvimento não apenas da comunidade escolar, mas de todo o distrito. Pensamos a educação como um meio de preparar nossos alunos para um futuro melhor, promovendo valores e desenvolvendo uma consciência de cidadania e responsabilidade ambiental”, destaca o professor.


Para Marcelino Ramos, agricultor e pai de um dos alunos, o trabalho realizado pela escola é fundamental para o futuro das novas gerações. Ele vê na educação a chance de seus filhos terem oportunidades que ele não teve. “Acho muito importante, porque isso abre portas para um futuro melhor para eles. Eu mesmo não tive o privilégio de estudar como eles estão estudando, mas quero que eles tenham um futuro mais bonito do que o meu, mas sempre honrando e valorizando nossa cultura”, afirma.

Uma turma, muitos níveis de ensino e aprendizado

Com uma rede de ensino predominantemente rural, Manicoré enfrenta particularidades que vão desde as dificuldades de acesso até a necessidade de aulas com conteúdos variados para estudantes de diferentes séries em uma mesma turma. Para atender a essa demanda, formações específicas foram criadas, capacitando os professores a trabalhar com o livro didático de forma adaptada.

Uma das iniciativas pelo programa é o projeto "Manicoré: Hora de alfabetizar", que busca não só elevar os índices de alfabetização, mas também construir uma referência educacional para a região.

“O programa é parte de um esforço maior para transformar a educação local, especialmente levando em conta as necessidades das comunidades rurais e dos professores que trabalham com turmas multisseriadas. Queremos que nossos professores estejam preparados para planejar e priorizar habilidades, utilizando os recursos disponíveis para atender de forma eficaz todos os alunos”, explica Earlene.

O projeto engloba temas variados, com destaque para alfabetização e equidade racial. “Nosso foco é garantir que o livro seja bem aproveitado nas salas de aula de educação infantil ao quinto ano, priorizando habilidades e ajustando o conteúdo à realidade local”, acrescenta Earlene.

Para fortalecer a disseminação de boas práticas, a Secretaria conta com professores multiplicadores que levam o conhecimento adquirido nas formações para seus polos educacionais, facilitando o processo de capacitação nas áreas mais distantes do centro urbano. Segundo Earlene, essa estratégia tem sido muito eficiente: “No último encontro, conseguimos 100% de participação dos professores, o que mostra o quanto essa iniciativa tem dado certo”, comemora.


Outra inovação desenvolvida em parceria entre a Semed e a Motriz foi a criação dos polos de formação, onde os professores das comunidades vizinhas podem se reunir para compartilhar experiências e desenvolver suas práticas pedagógicas.

Antes, esses professores tinham apenas três dias na cidade para resolver todas as pendências, incluindo formações, recebimento de salários e busca de materiais. Agora, com os polos, o processo ficou mais eficiente, permitindo que o tempo seja utilizado para aprimorar suas técnicas e métodos de ensino, possibilitando oferecer ciclos de formação mais próximos dos locais onde moram os educadores.

A professora Rosineire aponta que é essencial que a educação reforce a valorização da identidade cultural e reflita um princípio indígena de sua comunidade: "Nada sobre nós sem nós". “Deixo um recado para as novas gerações indígenas: reconheçam-se, lutem pelo que acreditam e ocupem todos os espaços possíveis. Estudem e acreditem em seus sonhos, pois é possível alcançar o que desejamos”, conclui.

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