Iniciativa do programa Motriz Educação Amazônia, “Guardiões do Amanhã” desenvolve diferentes iniciativas nas comunidades, envolvendo estudantes e moradores
Às margens do rio Arari está a comunidade Vila Batista, distante 40 minutos de voadeira (tipo de embarcação com motor comum nos rios da Amazônia) da zona urbana de Itacoatiara. O município, por sua vez, está a 270 quilômetros de Manaus, capital do Amazonas. Lá, a adolescente Maria Clara Batalha da Silva, estudante da escola municipal Vereador Luiz Oliveira Onety, tem notado que a cada ano é mais intenso, longo e severo o período de seca.
Com texto de Cley Medeiros e fotos de Aline Fidelix.
Esta série especial é uma iniciativa da plataforma Amazônia Vox, realizada em parceria com a Fundação Lemann e Motriz. O Programa Motriz Educação Amazônia conta com o incentivo da Fundação Lemann, Instituto Natura e Porticus.
A estiagem impacta diretamente nas aulas, já que o rio é a estrada que leva os estudantes para a escola. Sem ele, é necessário usar a estrada de terra, que deixa o percurso mais longo e cansativo. Notando o quanto o meio ambiente influencia na capacidade de aprendizado no dia a dia, a própria comunidade e os alunos discutiram formas de envolver mais o tema nas atividades da escola.
Através do programa desenvolvido pela Motriz com apoio da Fundação Lemann, Co-Impact, Instituto Natura e Porticus, a comunidade escolar implementou em 2024 o projeto Guardiões do Amanhã, desenvolvido em parceria com as secretarias municipais de Educação, Meio Ambiente e de Produção e Abastecimento Municipal, a Labor Educacional e a SOS Amazônia. A iniciativa permitiu que Maria e outros alunos sejam protagonistas de uma articulação que envolve toda a comunidade com cerca de 700 famílias.
Um dos diferenciais do Guardiões do Amanhã está no fato de que as ações são realizadas a partir de escutas feitas pelos próprios estudantes nas comunidades. Foi esse diálogo que permitiu a definição de uma série de caminhadas de conscientização ambiental pela Vila Batista.
Antes do trabalho, os alunos recebem orientações sobre a importância da atividade, tendo como missão disseminar informação e conscientização. Os adolescentes se dividem em grupos e recolhem resíduos como sacolas plásticas, embalagens, garrafas, papel e outros itens, enquanto conversam e orientam os moradores, que também são familiares, vizinhos e amigos. Ao final da caminhada, a estudante Maria Clara Batalha da Silva e os demais alunos envolvidos na atividade percebem a alta quantidade de resíduos que é jogada pelas ruas e que costumam ir parar nos rios sem qualquer tratamento.
“Muitas vezes, as pessoas não percebem como nosso planeta está sendo prejudicado e isso faz com que o aquecimento global se agrave. Eu não sabia das consequências de jogar lixo no chão, mas depois desse projeto isso mudou. É importante ter esse cuidado com a natureza, especialmente agora com as mudanças climáticas”, argumenta Maria Clara Batalha da Silva.
Pouco falado, lixo também produz gases que impactam o clima - Os setores de energia, uso do solo (como o desmatamento) e transportes concentram a maior fatia de responsabilidade pela emissão de Gases de Efeito Estufa, que geram o aquecimento global. No entanto, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) tem chamado a atenção para um olhar mais atento para os resíduos sólidos urbanos.
No relatório Global Waste Management Outlook 2024 (Perspectiva Global de Gestão de Resíduos 2024), produzido pela ISWA (International Solid Waste Association ou Associação Internacional de Resíduos Sólidos, em tradução livre), o documento alerta que “o impacto dos resíduos nas alterações climáticas tem sido subestimado historicamente, o que levou ao subinvestimento na redução e gestão como forma eficaz de mitigação das alterações climáticas”. O metano, produzido pela decomposição de resíduos, é mais de 20 vezes mais prejudicial que o dióxido de carbono (CO²), usando sempre como referência para calcular a emissão de gases.
O projeto “Guardiões do Amanhã” tem tido cada vez maior participação da comunidade escolar. Em Itacoatiara, são 14 escolas que fazem parte do projeto, envolvendo diretamente 56 alunos de 12 a 15 anos. O objetivo das ações educativas é reforçar conteúdos curriculares enquanto promove o protagonismo juvenil e a conscientização sobre questões ambientais.
“Alguns dos principais projetos são de conscientização sobre lixo e arborização da comunidade, conforme os diagnósticos participativos que realizamos. A partir disso, são escolhidos os temas prioritários para a comunidade, relacionados ao meio ambiente e aos impactos causados pela ação humana”, explica o professor André Ribeiro, que atua como técnico da Secretaria de Educação e formador do Projeto Guardiões do Amanhã.
Receita para alto engajamento inclui escuta e protagonismo
O principal trunfo do “Guardiões do Amanhã” é exatamente o protagonismo dos estudantes, que definem o que vão realizar de atividade. Para isso, o projeto cumpre etapas. Primeiro, os professores e técnicos recebem a formação; em um segundo momento, compartilham com os alunos, que por sua vez definem e realizam as ações, multiplicando o conhecimento na escola e na comunidade.
André Ribeiro explica ainda que o diagnóstico participativo envolve uma metodologia que busca ouvir a comunidade e incorporar seus saberes locais para mapear problemas ambientais e sociais. "A gente convida os moradores mais antigos, os estudantes e os professores para participarem das formações e realizarem o diagnóstico. Dessa forma, todos podem compartilhar suas perspectivas e identificar os principais desafios e oportunidades de cada localidade", conta André.
“Hoje em dia, vemos mudanças climáticas, como queimadas e longos períodos de seca, que são consequência das ações humanas. Tentamos passar essa consciência para os alunos: se não cuidarmos agora, quem cuidará?”, destaca Antônia Lúcia Nunes Tundis, diretora da escola Vereador Luiz Oliveira Onety.
Ela reforça o quanto o engajamento dos alunos e o diálogo com os pais e comunidade tem transformado a realidade local. “Como educadora, eu me sinto realizada e muito feliz com esse projeto. É gratificante ver que estamos ajudando a comunidade. Embora muitos falem sobre a importância do meio ambiente, poucas são as atitudes práticas que vemos. Precisamos de mais projetos como esse, que incentivem a participação de todos, não apenas para receber a ideia, mas em realmente se engajar na sua execução, porque, muitas vezes, o projeto chega, mas a adesão é difícil”, afirma a gestora.
Para Ana Paula Carvalho Calheiros, coordenadora da Semed, que já atuou como professora na região do Arari, a escuta foi fundamental para o sucesso do projeto. “Criamos, junto com a Motriz, uma trilha do que poderíamos fazer para protagonizar mais esse engajamento da comunidade, mas, para isso, precisamos considerar o ambiente onde eles vivem”, complementa.
Uma das principais etapas do diagnóstico é a avaliação do perfil socioeconômico dos estudantes e dos desafios que enfrentam para chegar até a escola, por exemplo. “A distância também é um problema. Muitos alunos têm que acordar às 5 horas da manhã para chegar na escola às 7 horas. Chegam cansados, e muitas vezes a gente precisa dar merenda para eles, porque não tomaram café antes de sair de casa. Além disso, muitos ajudam as famílias nas plantações, e isso faz com que faltem às aulas, principalmente os alunos dos anos finais. Essa realidade se agrava ainda mais durante a seca, quando alguns lugares ficam inacessíveis de barco, e os alunos precisam andar quilômetros para pegar a embarcação”, explica a coordenadora Ana Paula.
Compreender essa realidade socioeconômica é fundamental para que o projeto “Guardiões do Amanhã” desenvolva ações que dialoguem com as vivências dos estudantes e gerem maior engajamento. O processo de escuta e cocriação com os alunos e a comunidade escolar permite que as atividades sejam adaptadas às suas rotinas e desafios, tornando a aprendizagem mais significativa. Dessa forma, os próprios jovens passam a reconhecer as oportunidades em seu território e a se conectar com os temas ambientais trabalhados, fortalecendo seu protagonismo e consciência socioambiental.
Na comunidade Monte Cristo, horta no quintal da escola beneficia estudantes
Não muito longe da Vila Batista, está a comunidade Monte Cristo, também no rio Arari. Nela, Rihanna Caroline Barbosa Pinheiro, de 13 anos, sonha em ser engenheira agrônoma. Toda semana, ela reúne com outros colegas para organizar as atividades da horta comunitária que foi plantada no quintal da Escola Municipal Monte Cristo.
O diretor da escola, Rosinaldo Farias, destaca o quanto a horta envolve toda a comunidade escolar . “Estamos agora na segunda colheita e já utilizamos os produtos nas refeições. Os alunos do quarto e quinto ano ajudaram e todos ficaram felizes ao verem os resultados do trabalho. Como essas verduras precisam ser replantadas a cada três meses, estamos sempre renovando os canteiros. Além de contribuir para a merenda, a comunidade também tem acesso aos produtos”, explica o gestor da escola municipal Monte Cristo, Rosinaldo Farias.
Para o preparo da horta, os estudantes mobilizaram a associação de produtores da comunidade, que cedeu um trator para preparar a terra e facilitar com a limpeza do local para o plantio. “Eu me interessei mais por isso porque é como cuidar de uma vida. A gente tem que estar sempre cuidando, porque senão as plantas morrem”, destaca a estudante.
A prática de cuidar da horta se conecta ao que eles aprendem em sala de aula, especialmente nas aulas de ciências e geografia. “Nosso professor de geografia sempre fala sobre a natureza, e a gente traz essas ideias para a horta”, comenta Rihanna.
Na avaliação da coordenadora pedagógica Tamiles Silva, responsável por acompanhar de perto as 18 escolas do Arari, os projetos definidos pelos estudantes no município de Itacoatiara, são fundamentais para a comunidade.
“Ver os alunos aplicando esses conhecimentos na prática e sabendo que eu contribuí para esse processo é gratificante. Na minha experiência, vejo que a educação é a chave para abrir muitas portas e oportunidades, e espero que esses alunos tenham um futuro brilhante. Como moradora do Rio Arari e ex-aluna de escola pública da rede municipal, vejo o quanto esses projetos são importantes para a nossa realidade, especialmente em um contexto de mudanças climáticas”, conclui Tamiles.
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