Com apoio do programa Motriz Educação Amazônia, professores recebem formação e escola na zona rural iniciou plantio de agrofloresta por alunos
Enquanto observa a filha Larissa Manoela brincando com as amigas no pátio da Escola Municipal de Ensino Fundamental Areia Branca, na zona rural de Ulianópolis, no interior do Pará, o agricultor Valdenor Lima Ferreira, de 55 anos, suspira. Puxa o celular do bolso, passa o olhar pela tela e comenta sobre o que já percebe no presente, sabendo o quanto a educação vai ajudar a filha também no futuro.
Com texto de Daniel Nardin e fotos de Marcio Nagano.
Esta série especial é uma iniciativa da plataforma Amazônia Vox, realizada em parceria com a Fundação Lemann e Motriz. O Programa Motriz Educação Amazônia conta com o incentivo da Fundação Lemann, Instituto Natura e Porticus.
“Às vezes me mandam mensagem, dessas com letra mesmo, para algum serviço na roça de alguém. Eu e minha velha não tivemos estudo, aí passo para ela. Tão pequena, oito anos… ela pega e lê direitinho. Aí me passa o que querem. A gente tem maior orgulho de ver ela hoje assim, lendo e escrevendo, toda inteligente”, afirma.
A atual facilidade de Larissa com a leitura é algo bem diferente daquilo que o pai e os professores percebiam pouco tempo atrás. “Ela tinha muita dificuldade para ler e fazer conta. Ficava triste, emburrada porque não conseguia entender as coisas. Agora, é bem diferente. E quando dá ‘prego’ no ônibus da escola, me liga e saio do serviço pra levar. Ela não aceita faltar não, gosta muito daqui”, relata.
O avanço de Larissa nos últimos dois anos ajuda a dar rosto e nome para os números positivos do município de Ulianópolis, que obteve o melhor resultado entre os municípios do interior do Pará, fora da Região Metropolitana, no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) de 2023, divulgado em 2024.
Com nota de 6,2 nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, Ulianópolis aumentou 17% o indicador em relação ao levantamento de 2021, que estava em 5,3, ficando agora acima da meta definida pelo Ministério da Educação para o país, que era de 6,0. A nota conquistada por Ulianópolis é também maior que a média da rede pública no Pará para esse recorte, que foi de 4,8.
Para o secretário de educação do município, Walmir Nogueira Moraes, os resultados colhidos no Ideb representam o início de um esforço que começou com a retomada após a pandemia, que impactou severamente o ensino no país entre 2020 e 2021.
“Eu tinha consciência da necessidade de um apoio maior para superar as dificuldades. Era preciso um aporte, mas só o financeiro não resolveria. Precisávamos de uma parceria entre a gestão escolar, a família e os alunos. Mas, como fazer isso? Aí que entra a importância da gente ter sido selecionado para o programa Plantar, que fez toda diferença”, relembra o gestor.
Com o programa, veio o apoio pedagógico para o desenvolvimento de novas iniciativas, algo importante, especialmente quando o ‘cobertor financeiro’ é curto. “Não tem jeito para os municípios pequenos. Se você investe mais numa área, em outra vai faltar. Por isso ficamos tão preocupados em ver o resultado, senão você perde força sobre o que tentou fazer”, afirma Walmir.
“Número tem rosto e nome”
Em Ulianópolis, uma das primeiras ações do programa foi realizar três avaliações internas na rede municipal ao longo de um ano. No início, um diagnóstico; no meio, monitoramento; e no final, a verificação dos indicadores e desempenho. “Esses resultados se transformam em um gráfico. Mas, esse gráfico tem rosto, tem nome, tem família. Os alunos que estão no vermelho participam de um trabalho individual. Esse aluno já evolui na segunda avaliação e isso motiva o professor, que acaba contagiando a escola toda”, argumenta o secretário Walmir.
Tal como uma árvore que cresce a partir de uma raiz, o programa possui ramificações. Ele abrange iniciativas com diferentes nomes nos municípios em que atua, escolhidos pela comunidade, o que ajuda a gerar maior identificação. Em Ulianópolis, o programa da Motriz gerou o “Germinar saberes”, que tem foco na recomposição da aprendizagem com o envolvimento das famílias dos alunos.
“É como um reforço escolar, no qual trabalhamos com habilidades de português e matemática. Mapeamos todos os estudantes e aqueles que não estão lendo, escrevendo ou desenvolvendo as operações básicas de matemática fazem recomposição de aulas duas vezes por semana e mobilizamos os professores, que também receberam formação para saber fazer essa atividade com os alunos e trabalhar com os pais”, detalha a coordenadora da secretaria, Silvana Matos Oliveira.
Mãe da aluna Rebeca, de 10 anos, Verônica Santos percebeu a melhora da filha, sobretudo no difícil processo de readaptação com as aulas presenciais pós-pandemia. “Quando as aulas voltaram, a Rebeca estava muito ruim. Eu tentava em casa, mas em sala é diferente e com certeza melhorou muito. Ainda hoje a professora me procura pelo celular, me chama no privado, comenta as dificuldades, passa dicas, manda exercícios. Acho a professora muito esforçada, dedicada mesmo e isso faz toda a diferença”, comenta.
Outra iniciativa fruto do programa em Ulianópolis foi o “Sementes de leitura”, que tem foco na alfabetização na idade certa, reduzir a distorção idade-série, com avaliação contínua e formação de professores. “Essa iniciativa atua muito forte no ensino da alfabetização na idade certa e num trabalho de apoio junto aos professores, contribuindo para esse resultado positivo que tivemos nas avaliações”, avalia Laudiceia de Brito Alexandre, coordenadora de Ensino da secretaria.
Em Areia Branca, a sala é a floresta (e vice-versa)
Outra iniciativa criada em Ulianópolis a partir do programa Motriz Educação Amazônia foi o projeto Salas Floresta, implementado em uma das 18 escolas da zona rural da cidade. No total, a rede municipal possui 32 unidades que atendem quase 6 mil alunos, da educação infantil ao 9º ano do Ensino Fundamental.
O nome “Salas Floresta” pode causar confusão quando a escola não possui uma sala específica para o projeto ou mesmo uma floresta ao redor. No entanto, a escola utiliza os espaços escolares e fora da sala de aula para promover maior integração do estudante com seu próprio território. São realizadas visitas em propriedades rurais, áreas de reserva e outras iniciativas mais próximas dos alunos. Em uma delas, é a plantação na área da própria escola de mudas, em local entre o prédio e o campo de futebol. Ali, os alunos estão desenvolvendo um pequeno Sistema Agroflorestal (SAF).
Além de entender mais sobre as diferentes espécies e os cuidados que precisam, os alunos recebem novamente o tema para as aulas de matemática. As equações não são feitas com frutas como maçã ou pêra, que não são nativas da região. E sim com açaí, castanha, cupuaçú, entre outras. Os cálculos mais complexos também envolvem projeção de crescimento da muda e da área plantada.
Na disciplina Língua Portuguesa, leem textos que tratam do cuidado com o meio ambiente e as características do bioma amazônico. E, em redação, escrevem sobre o tema e a relação com questões climáticas, preservação e o território que vivem.
“Aqui é muito quente, desmataram muito e quase não tinha planta mesmo na escola. Espero que o projeto Salas Floresta continue e daqui uns anos outros alunos vão poder ter aula embaixo da sombra das árvores que plantamos hoje. São árvores frutíferas, então além de ajudar no resfriamento, vai também entrar no reforço da merenda escolar”, comenta Kaio Vinícius, de 13 anos, aluno do 7º ano. “É mais interessante aprender as disciplinas com coisas que a gente conhece, que vê. E tem ainda isso de sair um pouco da sala e da rotina”, comemora o aluno.
A professora Jorlene Sampaio era a diretora da escola e iniciou o processo de implementação do projeto Salas Floresta em Areia Branca, contando com apoio pedagógico da Motriz e técnico do IEB (Instituto Internacional de Educação do Brasil) e do Imazon, entidade que atua na área ambiental na Amazônia e tem sede em Belém.
Segundo ela, o Salas Floresta foi um dos responsáveis pela conquista da escola do primeiro lugar na avaliação de fluência e leitura do programa Alfabetiza Pará, do governo estadual. Com o sucesso da iniciativa, a professora foi convidada a assumir a coordenadoria de sustentabilidade da Secretaria de Educação do município para expandir o projeto para outras escolas.
“Isso só foi possível por conta do Salas Floresta, que potencializou o trabalho dos professores, com aulas mais leves, mais dinâmicas e com real interesse dos alunos. E estamos também criando uma consciência pela preservação, especialmente em um território que sofreu com o desmatamento em um passado recente. Queremos que esses jovens defendam este bem precioso que é o meio ambiente e compreendam o quanto é fundamental para o próprio bem-estar”, destaca a professora.
Iniciativa motivou criação dos Guardiões do SAF
O jovem Murilo Cauã, de 17 anos, é morador de Areia Branca e, atualmente, está no Ensino Médio. Mas, ajudou a plantar as primeiras mudas na escola ainda durante o Ensino Fundamental. Junto com outros amigos, criou o grupo Guardiões do SAF.
A iniciativa visa fortalecer o envolvimento dos adolescentes e cuidar do espaço com os mais novos, além de discutir o tema, criando jovens atentos para o ativismo ambiental e climático na comunidade.
"Hoje orientamos os alunos mais novos a adubar, podar e cuidar. E eles também divulgam a importância da agrofloresta, que pode fornecer alimentos e ajudar a resfriar um pouco o ambiente aqui mesmo na escola, no futuro. Eles levam esse conhecimento para casa e chegam aos pais. A gente só tem um planeta e, embora pareça pouco, cada árvore faz a diferença. Já agredimos muito a natureza e hoje estamos sofrendo com nossas próprias ações. É preciso mudar o comportamento, reduzir o consumo, que é muito exagerado e cuidar mais da nossa realidade e do que está ao nosso redor”, reflete Murilo.
O atual diretor da escola, Jardiel dos Santos, observa que o nível de concentração e absorção de conhecimento pelos alunos aumentou consideravelmente com o Salas Floresta. “A maioria das crianças que nasceram aqui não teve a oportunidade de ver a quantidade de árvores que tinha nessa região. Com o SAF, elas veem desde o plantio, a muda, observa ela crescer e isso gera uma relação”, afirma.
Segundo ele, é visível o desenvolvimento dos alunos com maior facilidade de absorver conhecimento e lembrar das disciplinas. “Minhas aulas quase não são mais em sala. Trago eles para fora e discutimos a disciplina. Por exemplo, medimos a distância de uma muda a outra e trabalhamos com o perímetro e área. A macaxeira que eles plantaram e colheram, usaram para fazer conta, já foi usada na merenda escolar. Tudo isso facilita a lembrança, o aprendizado das aulas com mais facilidade”, comenta.
Espalhando sementes, Salas Floresta prepara chegada no Amazonas
O exemplo dos bons resultados educacionais e de envolvimento dos estudantes, professores e familiares com o meio ambiente em Ulianópolis, no Pará, inspira um projeto semelhante que está em processo de formulação para ser semeado em Presidente Figueiredo, no Amazonas.
Distante 130 quilômetros de Manaus, o município de Presidente Figueiredo é cercado por Áreas de Proteção Ambiental (APA). É o quinto do Amazonas em extensão de áreas preservadas. São pelo menos cinco sítios arqueológicos, mais de 150 cachoeiras catalogadas e 30 cavernas. Entre elas, uma das maiores da Amazônia, a Caverna de Marajoara, com 374 mil hectares.
Em 2024, a gestão da área de meio ambiente e de educação do município realizou uma série de discussões e momentos de formação com a equipe técnica da Motriz e promoveu uma sondagem com os estudantes da rede. O resultado identificou que os estudantes não tinham conhecimento aprofundado do próprio território.
Para o então secretário de meio ambiente, Luizinho Schwade, é urgente uma mudança de perspectiva, especialmente entre os mais jovens. “Se continuarmos a tratar a natureza como fizemos nos últimos 200 anos, não teremos mais 200 anos pela frente, especialmente as pessoas da nossa realidade, em um país da periferia global. Temos que aproveitar o fato que o município possui diversas áreas de preservação e unidades de conservação, permitindo que jovens e crianças tenham contato com a natureza enquanto aprendem sobre ela e outros conhecimentos mais gerais, mas com esse contexto”, avalia Schwade.
A técnica da secretaria de Educação, Jonilce Viana, destacou que o levantamento acendeu o alerta do quanto é preciso fazer os estudantes terem mais contato com o local em que vivem e fazer isso durante as aulas, com o contexto da valorização e preservação do meio ambiente. “Percebemos esse baixo conhecimento sobre seu território, o clima, a hidrografia e a vegetação. Isso nos motivou a encontrar formas de potencializar esse conhecimento. Entendemos que era necessário promover a valorização do espaço onde estão inseridos, fazendo com que eles se sintam pertencentes.”, explica Jonilce Viana, técnica da secretaria municipal de Educação.
A partir de então foi formalizado um Comitê Intersetorial com dez técnicos de três secretarias municipais: Educação, Meio Ambiente e Assistência Social. O objetivo é justamente elaborar iniciativas e projetos que conectem ações pedagógicas com a temática de sustentabilidade e com o território do município. “O comitê de educação ambiental e sustentabilidade surgiu de sonhos e perspectivas de futuro, considerando que estamos em um território de Proteção Ambiental”, complementa.
Um dos projetos que já iniciou as atividades é o programa Kinja, desenvolvido em parceria com a Motriz e a secretaria de educação. “Essa iniciativa atua com estudantes do 3º ao 9º ano do Ensino Fundamental, focando no desenvolvimento de habilidades estruturantes que são essenciais para a progressão dos alunos em suas turmas e séries regulares”, destaca Adriana Guimas, da Motriz.
O nome foi escolhido pela própria comunidade e com participação do comitê. “Cada território deu um nome significativo para seu programa de recomposição de aprendizagem, conectado à cultura local. Os materiais, recursos e atividades refletem o que é específico de cada território, seja na linguagem, em pontos marcantes da história, geografia e biodiversidade local. Em Presidente Figueiredo, o nome é uma homenagem ao povo Waimiri Atroari, que possui reserva próximo ao município. Kinja é uma autodenominação que significa "gente de verdade”, explica Guimas.
O comitê também avalia como pode implementar no município o projeto Salas Floresta. Diferente de Ulianópolis, que utiliza uma SAF e plantação na escola. A ideia é aproveitar a proximidade com a própria floresta e fazer dela uma verdadeira sala de aula. Uma das opções para isso é utilizar o Parque Municipal das Orquídeas como um laboratório vivo.
“O conceito do Salas Floresta é potente tanto no aspecto educacional quanto social e econômico, criando oportunidades a partir do conhecimento adquirido. Ele promove um coletivo, no qual se contextualiza o currículo com o que se tem na realidade. Esse modelo pode influenciar diretamente as políticas públicas do município. Quando introduzimos essa proposta nas escolas, dizemos que vamos construir a partir do que elas já têm, trazendo isso para o currículo. A escola ganha autonomia ao trabalhar com seu contexto, valorizando a diversidade e potencializando o que já existe”, enfatiza Jonilce. Em 2025, com a nova gestão municipal, a equipe técnica da Motriz segue dialogando com as equipes das secretarias para prosseguir com os projetos.
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