
Startups do Amapá transformam resíduos do cardápio amazônico em negócios sustentáveis
Por Maria Clara Prudêncio e Mickael Marques Nobre, estudantes de jornalismo da Universidade Federal do Amapá, com supervisão de Ruanne Lima e Lylian Rodrigues. Edição de Daniel Nardin e Carla Fischer. Imagens de Rogério Lameira. Esta reportagem é parte do programa Vocação Amazönia, realizado pelo Amazônia Vox com apoio do Instituto Serrapilheira
O peso da emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) causada pelo lixo das cidades, chamado também de Resíduos Sólidos Urbanos ainda é baixo em todo o mundo e também no Brasil. De acordo com dados de estudo publicado em 2024 pelo Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg), o setor representou 4% das emissões brutas de gases de efeito estufa do país, mesmo índice do setor de processos industriais. As mudanças de uso da terra lideram as emissões, com 46%, seguida pela agropecuária, com 28% e energia, com 18%.
Porém, além das emissões, a falta de destinação adequada em lixões a céu aberto gera mais que a produção de metano pelo lixo - um gás 25 vezes mais prejudicial à atmosfera que o dióxido de carbono - pode contaminar rios, lençóis freáticos e causar problemas de saúde, sobretudo nas periferias da cidades. O problema, no entanto, tem inúmeros caminhos para solução.
O que é descartado pode virar peças de moda, como bolsas e roupas, biofertilizantes e até material de construção. É com esse olhar, transformando problema em oportunidade, que jovens da Amazônia estão reaproveitando o que ia para o lixo após o preparo da já famosa e reconhecida culinária amazônida, como o pescado, o açaí e mesmo o côco, tão difundido em orlas, praias e praças país afora.
Da mesa para as vitrines: pele de peixe vira couro para bolsas e acessórios
É com vista para o rio Amazonas e a orla de Macapá que Bruna Freitas organiza cuidadosamente uma mesa coberta por texturas únicas: couros de corvina, pescada amarela e pirarucu, peixes bem conhecidos - e consumidos - na região. Cada um com suas escamas, formas e histórias. Enquanto apresenta o material, ela explica o processo que transforma a pele dos peixes em produto de moda. Do simples descarte, muitas vezes irregular, para as vitrines das lojas, com design e tecnologia.
A mesma mesa que recebe os pratos da rica culinária amazônida, em boa medida tendo o peixe como principal proteína, recebe agora o couro das espécies, aproveitando melhor tudo, inclusive o que era resíduo. Ao fundo, o Rio Amazonas, de onde vem a matéria-prima de um modelo de moda com responsabilidade ambiental, proposta que é trabalhada pela empreendedora, que criou em 2022 a startup Yara Couro.
A empresa surgiu com o objetivo de transformar o que era considerado lixo em insumo de valor. O nome, “Yara”, é uma homenagem à sereia das lendas amazônicas, metade peixe, metade mulher. “A gente queria muito que fosse um nome potente, um nome que resgatasse essa identidade amazônida. E escolhemos Yara com Y, no Tupi Guarani, para reforçar isso, como se a própria natureza tivesse esculpido as nossas bolsas”, explica Bruna Freitas, que se mostra orgulhosa ao afirmar que o empreendimento é movido por mulheres nortistas.
Com base na ideia de que o couro de peixe é uma matéria-prima abundante e ao mesmo tempo subutilizada, a Yara Couro aposta na transformação desse resíduo em produtos de alto valor. Inspirada na riqueza da região e na cultura do consumo de pescado no Amapá, a empresa aposta na ideia de que o peixe vai muito além do filé e da alimentação: as peles, antes descartadas, podem gerar itens comercializáveis. Para Bruna, dar novo uso a esses materiais é uma forma de dar origem a uma nova cadeia produtiva, com impacto econômico, social e ambiental.
“A gente acredita muito que somos uma alternativa para um problema. Descartar uma pele de peixe de forma inadequada resulta em uma decomposição feita de maneira totalmente imprópria. Isso gera gases de efeito estufa de forma desenfreada. Quando a gente consegue inserir alternativas nesse processo, de forma que as pessoas sejam incentivadas a realizar, com certeza, isso configura um novo ciclo econômico, uma nova fonte de renda para quem depende do pescado e uma alternativa importante para a Amazônia em termos de agregação de valor”, diz a empresária.
Segundo a pesquisadora Danielle Hoshino, doutora em Biodiversidade Tropical e docente da Universidade do Estado do Amapá (UEAP), a cadeia produtiva do pescado tem um peso significativo na economia e no modo de vida da região. Ela ressalta que essa importância vai além da geração de renda, estando profundamente ligada a fatores culturais e de acesso à alimentação. “Enquanto a média nacional de consumo gira em torno de 10 quilos por pessoa ao ano, na Amazônia esse número sobe para 14 quilos, e em alguns municípios pode ultrapassar os 50 quilos por pessoa”, explica. O dado, segundo ela, reforça a oportunidade de valorizar mais e aproveitar melhor todas as etapas da pesca, uma área que enfrenta um grave subaproveitamento.
Localizado na região costeira do Amapá, o município de Calçoene se destaca como um dos principais polos pesqueiros do estado, responsável por grande parte da distribuição de pescado para o consumo interno e até venda para outras regiões do país. A atividade movimenta a economia local e é o sustento de muitas famílias, mas também gera grande volume de resíduos. Segundo um estudo apresentado no 1º Encontro Estadual do Setor de Resíduos Sólidos, em 2024, os rejeitos da filetagem e do beneficiamento do pescado são os principais causadores de contaminação do solo e dos lençóis freáticos nas localidades do município. Como resposta ao problema, cerca de 60 toneladas de resíduos foram retiradas de Calçoene, entre setembro e novembro de 2023, em uma ação voltada à prevenção da poluição ambiental.
Com o objetivo de minimizar o desperdício, Bruna Freitas conta que sua equipe buscou transformar o pescado e a cultura local em fontes de valor para comunidades que dependem da pesca, como ribeirinhos, cooperativas, indígenas e filetadores. Baseada na bioeconomia, a Yara Couro aposta na ressignificação dos recursos locais, desenvolvendo parcerias com comunidades e oferecendo capacitação sobre o tratamento adequado das peles de peixe, da filetagem à conservação, respeitando os períodos de reprodução das espécies e as condições ideais de aproveitamento.
“A gente constrói uma parceria que precisa ser interessante para eles também. Nós compramos a pele e, em comunidades menores, a gente vai lá e implementa biodigestor, porque a ideia não é só ficar com a pele, é ensinar que eles podem aproveitar a integralidade do pescado. Após isso, o que é pele a gente compra; o que é resíduo, como cabeça e vísceras, a gente processa nesses pequenos biodigestores, para que eles possam gerar biogás e biofertilizantes. Assim, eles também podem consumir o próprio biogás no fogãozinho deles e, com o biofertilizante, trabalhar em horta, na produção local e na agricultura também”, conta Bruna, que defende a valorização de todo o potencial do pescado. O biodigestor é um equipamento que processa por meio natural da decomposição o resíduo orgânico em gás ou líquido, que é aproveitado nas comunidades. Uma reportagem do Amazönia Vox já mostrou como esse equipamento é utilizado também em um restaurante na Ilha do Combu, em Belém, praticamente zerando a geração de resíduos da cozinha.
Para Danielle Hoshino, a ressignificação de resíduos é uma alternativa essencial para conscientizar a população sobre os impactos do descarte inadequado, especialmente em regiões com alta produção pesqueira. Segundo ela, a filetagem e o beneficiamento geram grandes volumes de matéria orgânica que, sem o devido tratamento, poluem solos e corpos d’água. “Falamos muito dos resíduos sólidos do peixe, mas os líquidos também precisam de atenção. Se forem descartados em locais inapropriados, eles causam grandes impactos, contaminam o solo, os rios, desequilibram o ambiente. É muita matéria orgânica, e isso interfere diretamente na saúde dos ecossistemas”, alerta.
É diante desse cenário, que soluções como a desenvolvida pela startup Yara Couro ganham relevância. A proposta parte da valorização de resíduos da pesca como estratégia para fortalecer economicamente as comunidades envolvidas e incentivar novos usos para esses recursos. “O peixe gera muitos resíduos e é importante que além de falar de sustentabilidade, a gente fale de alternativas que vão beneficiá-los financeiramente. Acho que é um bom primeiro passo colocar mais dinheiro na mão de quem está trabalhando para colocar essa cadeia de pé e também estar capacitando, para que eles possam fazer disso uma nova cultura, uma nova perspectiva”, afirma Bruna Freitas.
Couro verde - Foi nesse contexto que surgiu a classificação de Green Leather da Yara Couro. A iniciativa vai além do reaproveitamento de resíduos, estruturando um modelo produtivo sustentável que considera todas as etapas da cadeia pesqueira e inclui a participação das comunidades envolvidas. O couro de peixe desenvolvido pela empresa é tratado com taninos vegetais - substâncias naturais extraídas de plantas usadas no curtimento do couro - e corantes naturais ou à base de água, com o objetivo de reduzir os impactos ambientais associados à produção tradicional de couro.
“Não é só fazer couro, é fazer couro a partir de um processo produtivo que seja respeitável, valorizando a cadeia produtiva e também os insumos”, diz Bruna. A empresa também vem investindo no desenvolvimento de pigmentos e taninos próprios, produzidos a partir de outros materiais orgânicos e resíduos. A proposta combina inovação, tecnologia e insumos regionais para criar um processo produtivo mais limpo, eficiente e com maior valor agregado.
Atualmente, a Yara Couro integra o Programa Prioritário de Bioeconomia, coordenado pelo Instituto de Desenvolvimento e Sustentabilidade da Amazônia (IDESAM) e pela Axcell (Aceleradora de Negócios Amazônicos), parcerias que impulsionaram o desenvolvimento da startup. Segundo Bruna, os desafios são significativos, especialmente por se tratar da cadeia do pescado na Amazônia, marcada por questões sociais, ambientais e logísticas. “Não é fácil fazer bioeconomia, não é simples evoluir uma cadeia produtiva tão complexa quanto o pescado aqui na Amazônia, mas a gente topou o desafio, e tem vários parceiros que toparam com a gente também”, conclui.
Ao longo dessa caminhada, os resultados começaram a aparecer. Visibilidade, reconhecimento e, acima de tudo, impacto real na vida das comunidades envolvidas. “E assim, de lá para cá, a gente tem colhido frutos importantes, com uma visibilidade, que realmente está fazendo a diferença na vida das pessoas e dos nossos fornecedores”, diz Bruna, com um sorriso no rosto.
O próximo passo da Yara é também um símbolo de consolidação: o lançamento do e-commerce da marca. “É um grande marco lançar o nosso e-commerce, que vai estar disponível ainda neste primeiro semestre de 2025, como fruto desse trabalho que é feito por muitas mãos”, finaliza Bruna, que, com raízes firmes no Amapá, pensa em expandir o negócio internacionalmente.
Iniciativa transforma caroço do açaí em biofertilizante e evita alto descarte em Macapá
Distante apenas 150 metros do escritório-sede da Yara Couro, em Macapá, está o complexo conhecido como Rampa do Açaí. O local, além de ponto turístico da capital, é também uma via essencial para o escoamento do produto, que chega de diferentes regiões do estado, refletindo a importância econômica e cultural do fruto no Amapá, assim como em boa parte da Amazônia. No início do dia, o vai e vem de pequenas embarcações movimenta o complexo, onde compradores e donos de batedeiras se reúnem para recolher o fruto, seja para o consumo direto ou para a comercialização.
É a partir dessa economia em torno do açaí que surge também um outro problema: o descarte do caroço. O que sobra nas batedeiras e feiras da capital geralmente não tem destino certo e acaba nos rios ou em lixões à céu aberto. Foi justamente observando esse cenário, com pilhas de caroço na frente das vendas de açaí todos os dias, que o produtor rural Wesley Lamonier começou a enxergar algo além do óbvio. Dedicado ao cultivo de hortaliças e pimentas, Wesley viu sua produção ameaçada em 2020, quando a pandemia de Covid-19 agravou a crise no setor agrícola e fez disparar o preço dos fertilizantes importados - o que piorou ainda mais com a guerra na Ucrânia.
Em busca de alternativas para garantir a continuidade e a qualidade da colheita, ele e o sócio, Thyago Monteiro, passaram a estudar maneiras de melhorar o solo com o que havia disponível por perto. Foi então que dois desafios, até então desconectados, começaram a se cruzar: de um lado, o alto custo dos fertilizantes; do outro, a sobra dos caroços de açaí sem utilidade.
Dessa inquietação particular, nasceu uma ideia simples: transformar o incômodo em solução. O caroço, antes rejeito, virou matéria-prima. O custo elevado dos fertilizantes, antes um desafio, encontrou uma alternativa local. Assim, surgiu o Biochar (Biocarvão, em português) a partir do caroço de açaí, um produto que, embora não seja um fertilizante por si só, age alterando as propriedades físicas e químicas da terra. “A gente buscou uma alternativa para, primeiro, resolver um problema nosso, interno, como produtores rurais”, afirma Wesley.
No processo de elaboração do produto e do negócio, Wesley, CEO da startup Amazon Biofert, conta que, inicialmente, eles realizaram testes na própria propriedade rural, sem a intenção de transformar isso em algo rentável. “A gente descobriu o biochar, e, então, fomos encontrando maneiras de como produzir o biochar de forma artesanal e também de como utilizá-lo na terra. Foi só em 2021, quando veio o programa Inova Amazônia, do Sebrae, que a gente uniu uma equipe com diferentes conhecimentos e conseguiu escrever uma ideia, e foi essa ideia que iniciou o projeto Amazon Biofert, a primeira fábrica da indústria de biochar da região norte e a segunda no Brasil”, conta Wesley, com muito orgulho do pioneirismo alcançado com o projeto.
A iniciativa dos dois engenheiros aborda um problema que afeta diariamente a população amapaense e o ecossistema local. Segundo um estudo publicado em 2022 na revista Ambientes e Sociedade, liderado pela pesquisadora Lidiane de Vilhena, do Instituto Federal do Amapá (IFAP), a situação do descarte dos resíduos do açaí é preocupante: não há um destino adequado para a maior parte do rejeito. O levantamento identificou que, apenas nos municípios de Macapá e Santana, são descartados 24.455 kg de caroços de açaí por dia. Desse total, 11.580 kg/dia são encaminhados para olarias, 4.050 kg/dia acabam em lagos, ressacas e terrenos baldios, 3.085 kg/dia vão para lixões a céu aberto ou aterros controlados, 1.600 kg/dia são aproveitados como adubo e a destinação de 4.140 kg/dia permanece desconhecida.
Wesley explica que o Biochar é considerado um dos mais eficientes condicionadores de solo já encontrados. Produzido a partir de biomassa (lavagem e secagem que reduz a umidade para que o caroço atinja peso constante) carbonizada, o processo de fabricação envolve a pirólise, uma técnica que aquece materiais orgânicos na ausência de oxigênio. Nesse ambiente sem combustão, a biomassa se decompõe termicamente, dando origem a gases combustíveis e ao biocarvão. No caso da Amazon BioFert, esse processo ocorre a temperaturas iguais ou superiores a 500 °C. “Com isso, a gente consegue aumentar a superfície específica e fazer com que esse biocarvão se transforme num ímã de fertilizante, reduzindo o uso de fertilizantes agrícolas, aumentando a porosidade do solo e a atividade microbiana”, explica Wesley.
Com a abundância de resíduos de açaí no estado, o Biochar surge como uma alternativa viável para ressignificar o fruto. Pesquisas revelam que apenas entre 20% e 30% do açaí é aproveitado como polpa para consumo. O restante, cerca de 70% a 80%, corresponde ao caroço e outros resíduos, geralmente descartados. Isso significa que a maior parte do fruto não é utilizada diretamente pela cadeia produtiva.
Segundo o professor da Universidade do Estado do Amapá (UEAP) e pesquisador do projeto de extensão Açaí Biogás Prime, Menyklen Penafort, o alto índice de desperdício representa um desafio ambiental significativo. “Nós temos resíduos de alimentos em abundância provenientes da cultura de consumo no estado, por exemplo o açaí. Mas a população em geral não está preparada em como dar o destino adequado a esses resíduos. Então, eles acabam sendo jogados a olho nu. Isso pode acabar assoreando os rios, matando a biota, matando os peixes, afetando a flora e a fauna” aponta Penafort.
Ao compreender o quanto do resíduo é descartado no estado e definir a biomassa do açaí como o componente para desenvolver o Biochar, a Amazon Biofert deu início a um processo mais profundo do que apenas recolher um resíduo urbano descartado. A proposta é entender, com sensibilidade e técnica, como acessar esse material de forma mais consciente, integrada ao cotidiano das comunidades e das cadeias produtivas locais, não apenas resgatando o que foi deixado para trás, mas reconhecendo que existe um potencial de gerar renda para outras pessoas. “Nós temos uma cadeia de coletores de biomassa urbana, um resíduo que poderia estar indo para olarias, que poderia estar indo para aterros sanitários. Hoje, parte dessa biomassa vem para a fábrica da Amazon BioFert, onde a gente compra esse resíduo e transforma em biochar”, afirma Wesley.
Esse olhar voltado aos coletores e produtores, aliado aos contratos de aprovisionamento com diversas indústrias no Amapá, permitiu que a Amazon Biofert recolhesse cerca de 150 toneladas de caroço de açaí, resíduos que além de poluentes, são fortes emissores de CO₂ quando descartados incorretamente. A partir desse volume, a startup conseguiu reduzir os resíduos em 75%, transformando cada tonelada de biomassa em 250 quilos de produto final.
Um levantamento liderado pela pesquisadora do Instituto Federal do Amapá (IFAP), Lidiane de Vilhena, mostrou uma diversidade de percepções sobre o reaproveitamento do caroço: enquanto 42% sugeriram usos como produção de mudas e extração de óleo, apenas 6% mencionaram a produção de adubo como alternativa viável. Outros apontaram o uso para artesanato (2%), queima (11%) e produção de ração animal (4%), enquanto 24% não responderam e 11% declararam não ter conhecimento sobre o tema.
Para Wesley, é preciso abordar a raiz do problema: a falta de conhecimento sobre o potencial do resíduo e como esse ‘’rejeito’’ pode se tornar diversos produtos viáveis. Compreender a relação que os trabalhadores mantêm com o fruto é fundamental para mudar essa realidade e reduzir o descarte. Foi com esse objetivo que o fundador da Amazon BioFert deu início a um processo de transição agroecológica com agricultores familiares e comunidades ribeirinhas no município de Mazagão, reconhecendo a profunda conexão dessas populações com o açaí.
“Elaboramos um projeto, em parceria com fundos e empresas, que prevê a doação de 40 toneladas de biochar para 200 agricultores da região de Mazagão. A iniciativa vai além da entrega do insumo, ela inclui também o acompanhamento técnico e consultorias especializadas, com o objetivo de ensinar o porquê de usar esse produto e também como ele vai impactar não só no solo, não só na planta, mas também no clima. Quanto de carbono aquilo ali vai estar reduzindo da atmosfera”, disse Wesley, que espera que, com o uso contínuo do biochar e o suporte técnico, os agricultores locais passem a adotar práticas mais regenerativas para o solo.
Para o pesquisador Menyklen Penafort, o caroço de açaí é uma matéria-prima com múltiplos usos. Pode ser transformado em biofertilizante, bioóleo, biogás e outros subprodutos, deixando de ser um passivo ambiental para integrar um ciclo produtivo sustentável. Investir em tecnologias que possibilitem esse aproveitamento agrega valor ao resíduo e fortalece uma economia baseada no reaproveitamento. “Ainda é necessário fortalecer o elo entre pesquisa, setor privado e governo para que esse ciclo avance e seja fomentado. O Amapá tem grande potencial para se tornar uma referência internacional, graças à sua localização estratégica, abundância de biomassa, aos profissionais qualificados, envolvimento de jovens e, principalmente, à cultura dos povos tradicionais, que também impulsiona esse sistema da bioeconomia”, pontua o pesquisador.
Dos lixos das barracas de água de coco para a base da construção civil
Enquanto iniciativas como a Amazon Biofert e a Yara Couro buscam expandir sua atuação no mercado, outras startups iniciam seus primeiros passos na bioeconomia local, avançando em pesquisa, mas ainda procurando mais investimento e apoio. É o caso do projeto “Mulheres de Fibra”, criado em 2022 por alunas do Instituto Federal do Amapá (IFAP), sob orientação da professora Leila Nunes, mestre em ciência e tecnologia dos materiais. A proposta surgiu a partir da ideia de repensar a composição de telhas cerâmicas com base em soluções sustentáveis e acessíveis.
Em um encontro marcado na “Praça do Coco”, ponto turístico de Macapá, Stephany Matos e Rafaela Melo explicaram por que escolheram a fibra do coco como matéria-prima. "É que a gente olhou muito para a nossa realidade, o nosso cotidiano”, disse Rafaela. “Em pontos turísticos como esse, o consumo de água de coco é muito comum, isso gera muito resíduo e muitas vezes esse resíduo não é descartado de forma adequada”.
Apesar de oficialmente chamada Praça Zagury, o nome popular faz referência direta ao fruto vendido nos mais de 30 quiosques do local. Seu Maranhão, dono de uma das barracas, estima vender cerca de 300 cocos por dia. “No verão, o movimento aqui é forte, principalmente nos finais de semana e nos dias de jogo de futebol na televisão”, afirma.
Dados do Sindicato Nacional dos Produtos de Coco (2023), indicam que apenas 10% da produção de cocos verdes e cocos secos possuem seus resíduos reaproveitados. “O restante é descartado em lixo comum. Então, eles podem ser encontrados em calçadas ou até mesmo são destinados totalmente para aterros sanitários. Se ele seria considerado um lixo e poderia emitir gases de efeito estufa como o dióxido de carbono (CO²), a gente vai trazer uma nova cara para ele, em que ele vai de fato trazer um benefício tanto para a comunidade quanto ambiental”, revela Rafaela.
A pesquisa, iniciada no curso técnico em edificações, gerou protótipos desenvolvidos em laboratório. Leila Nunes destaca que a fibra do coco tem características vantajosas: “Ele tem um alto potencial de lignina e também um baixo teor de celulose. Essas características melhoram, por exemplo, a qualidade com relação à durabilidade e, principalmente, a gente pode levar em consideração que a fibra em si é um material leve que pode diminuir também a densidade”.
Entretanto, para que o grupo chegasse até este resultado, alguns desafios foram encontrados no caminho. Nunes explica que o trabalho proveniente dos resíduos orgânicos apresenta uma particularidade natural dentro do seu tratamento. “Se você pega uma fruta e descarta, por exemplo, logo aquele processo de apodrecimento traz algum tipo de fungo e bactéria. A gente faz esse tratamento na fibra para que ela possa ser depois reaproveitada como um material da construção”.
Além dos desafios técnicos, a equipe também enfrentou barreiras sociais. Formado por Ana Pastana, Luana Sabrina, Rafaela Melo e Stephany Matos, o grupo relata dificuldades relacionadas à credibilidade científica e ao preconceito. “A região norte é uma área que infelizmente as pessoas desacreditam muito. Desacreditam muito da ciência do norte e das mulheres daqui. A gente inclusive sofreu casos de xenofobia e preconceito de gênero. A gente notou isso na pele”, relata Stephany.
Apesar disso, com apoio da professora Leila e por meio de editais, a equipe ampliou sua atuação. O projeto foi reconhecido em 2022 pelo Power 4 Girls, iniciativa da Embaixada e Consulados dos EUA. “Um ponto muito crucial foi a gente ter vencido essa primeira etapa, né? Nos deu um gás para buscar mais, foi a partir do Power For Girls que a gente foi pra outros editais, né? Para o edital da Prudential, para o edital da Força Meninas, o edital do Sebrae, foi que a gente foi vencendo e sendo finalista também”, lembra Stephany.
Hoje, o coletivo busca parcerias para viabilizar a criação de uma fábrica, enquanto avança nas etapas de patente do produto. A ideia é expandir para novas pesquisas com outras fibras populares da região, aliando sustentabilidade e aproveitamento de resíduos amazônicos.
Nos últimos anos, com maior atenção voltada à Amazônia, iniciativas da bioeconomia têm encontrado apoio por meio de editais e programas de incentivo. No Amapá, três delas ganharam visibilidade: Yara Couro (com apoio do IDESAM), Amazon Biofert (via Inova Amazônia) e Mulheres de Fibra (pelo Power 4 Girls). Todas iniciaram como startups em fase de ideação e hoje avançam na busca por consolidação no mercado.
“Eu acredito que é uma área que vai se expandir ainda muito mais e eu espero que tenha esse crescimento, que tenha essa evolução, não só pela questão da Amazônia em si, mas a própria comunidade também. Como que a gente correlaciona com a Amazônia? Acho que é um ponto muito importante da própria bioeconomia. Como que a gente permanece, como que a gente vê o espaço que a gente está e como que a gente valoriza esse espaço também? Eu acho que isso é um ponto muito importante”, finaliza Stephany.