Mercado da moda e beleza tem alternativas para causar menos impactos no meio ambiente - Episódio 3

Mercado da moda e beleza tem alternativas para causar menos impactos no meio ambiente - Episódio 3

Estilista cria peças reutilizando material descartado. Salão cria linha natural e busca convencer clientes. Para especialistas, iniciativas devem inspirar políticas públicas




Belém, Pará - 9 de Junho de 2024

Com reportagem de Daniel Nardin, imagens de Marcio Nagano e revisão pelos alunos da turma 2D, da EEEFM Antônio Lemos, de Santa Izabel do Pará. Esta série de reportagens foi viabilizada pela bolsa colaborAcción de investigação jornalística 2024, concedida pela Fundação Gabo e Fundação Avina.

Quando estava concluindo o curso de graduação em moda, Lucilene Carvalho refletia sobre qual seria o tema do trabalho de conclusão de curso. Indecisa, decidiu procurar nas ruas de Belém a inspiração. Como quase todos os dias, veio a chuva e correu para se abrigar sob a cobertura de uma banca de revistas, no centro da capital paraense. Ali observou o colorido das sombrinhas passando em sua frente.

A esquina em que se abrigava começou a inundar com a água da chuva, que nem era tão forte. Lucilene notou que o tecido de um guarda-chuva quebrado e descartado na rua impedia a passagem da água para o bueiro, contribuindo para o alagamento. “Aquilo abriu minha visão para todas as possibilidades e problemas que eu não estava vendo. Eu já tinha decidido que queria fazer algo que pudesse reaproveitar material, mas não sabia exatamente o que. Ali, ficou claro pra mim. Então para a conclusão do curso, fiz uma coleção de 15 bolsas de tecido de sombrinha e não parei mais”, afirma a estilista que criou a marca “Jalunale”.

Lucilene no seu ateliê, onde produz peças a partir de resíduos descartados. Foto: Marcio Nagano

O nome da marca carrega um afeto familiar: são as iniciais dos nomes de sua família, o esposo Jaime, Lucilene e as filhas do casal, Natália e Letícia. A inspiração para reaproveitar materiais já descartados veio da mãe. “Ela sempre reaproveitava, uma coisa virava outra. E cresci vendo aquilo, que nem sempre precisa comprar novo e sim reutilizar de outra forma. Então busquei fazer do meu estilo essa forma de moda, que é sustentável e trabalhar com o que temos. E resíduo a gente tem muito”, afirma. 

Uma das dificuldades para produzir as peças é justamente conseguir material. Apesar da abundância de resíduos pela cidade, Lucilene precisa da ajuda de amigos, vizinhos e de uma parceria com o Instituto Alachaster, que trabalha em Belém com cooperativas de catadores e informa Lucilene quando tem um bom volume para buscar. “O ideal era que tivesse um local para gente ir buscar sempre, para as pessoas deixarem, já limpo. Muita gente não sabe que posso reaproveitar o tecido de uma sombrinha que dura só duas chuvas para criar uma bolsa que dura pelo menos dois anos”, afirma. “Eu mesmo já parei meu carro durante chuva para recolher material. Olho para um lado, para o outro, vou lá e pego”, brinca. 

No ateliê, as máquinas de costura e manequins dividem espaços com caixas de sacolas plásticas, sombrinhas desmontadas, mochilas descartadas e até forros de bancos de carro. Dali saem mochilas, bolsas, jaquetas e vestidos. Mais recentemente, Lucilene fez uma pós graduação em produtos de moda e seu trabalho partiu para o reaproveitamento de jeans. “Esse material tem toda uma carga pesada, pois consome muita água em sua produção, muito produto químico que sai a cada lavagem. Uma vez que está feito, a gente precisa dar novos destinos, pois é material muito resistente. Então fiz uma nova coleção, mais arrojada e que chamou a atenção de mais gente”, afirma. 

De acordo com dados da ONU, apenas uma calça jeans utiliza mais de 3,7 mil litros de água em sua fabricação, considerando a produção de algodão, a fabricação, transporte e lavagem. Depois que chega ao consumidor, a peça continua gerando impacto ao meio ambiente a cada lavagem. Ela libera microfibras de plástico e outros poluentes, como aditivos químicos usados na fabricação, que não conseguem ser filtrados por estações de tratamento e isso acaba indo parar nos oceanos e mesmo em fontes de água potável.

 

A questão das microfibras é também um forte componente da poluição causada por tecidos sintéticos, como o poliéster usado nas sombrinhas e em boa parte das roupas. “Nossa cidade tem essa questão complicada do lixo. E é uma cidade tão linda. Machuca a gente andar e ver lixo nas ruas, mas também nos rios, quando a gente anda de barco. Isso também libera microfibras que a gente nem vê e continua poluindo. Mas está ligado ao que a sociedade faz, o que  produz e continua consumindo muito e desenfreadamente”, reforça Lucilene.

Para levar adiante a iniciativa, Lucilene ensina outras mulheres, desde 2013, em cursos oferecidos para comunidade em faculdades e centros de cultura e economia criativa, como o Curro Velho, em Belém. “Elas mudam o olhar para o que tem em casa e na rua, com a vizinhança. E produzem novas peças. É um ganha-ganha: deixam de gerar novos resíduos, recolhem muita coisa e ganham renda com a venda”, afirma. 

A produção de peças é contínua, mas em baixa escala. A demanda e o movimento no ateliê da Jalunale aumenta quando chegam encomendas específicas. Uma delas deu bastante trabalho, ajudou na contratação temporária de mais gente e deu satisfação para a estilista ao ver centenas de jovens usando estojos e pequenas bolsas feitas por ela. Tudo feito com plástico de banners usados em eventos da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Aquilo seria jogado fora, mas fechamos uma parceria, eles me forneceram o material e produzimos os brindes que foram entregues para os novos universitários”, lembra Lucilene. 

Outra parceria fixa que Lucilene cita é feita com uma empresa de comunicação e eventos, a Bioma, que repassa todo material de divulgação, como banners, para a estilista, que reaproveita e cria novos produtos e brindes, que são utilizados em eventos futuros. É a economia, na prática, circulando.

No centro da capital, salão reduz geração de resíduos e convence pelo exemplo

Num dos salões de beleza mais tradicionais de Belém, que atua na cidade há cerca de vinte anos, todas as funcionárias usam aventais, luvas e pequenas bolsas de materiais de jeans. Tudo com material reaproveitado, feito por encomenda com Lucilene, da Jalunale. A primeira encomenda ocorreu há alguns anos, quando a proprietária, Manuela Barbosa, lançou uma linha de cosméticos naturais, a Numa.

Paralelamente, adotou uma série de iniciativas para reduzir a geração de resíduos sólidos e líquidos com contaminantes no salão.“A gente está alterando tudo aqui, para ser um espaço de fato sustentável. Não adianta encher de verde, ficar bonito e na verdade poluir e não ajudar em nada”, reflete a empresária.

Salão de beleza na capital paraense adotou uma série de ações para reduzir e dar destino aos resíduos gerados. Foto: Marcio Nagano

O salão carrega um nome que reflete o padrão da clientela. O Manuela Hair Spa está  localizado no centro da cidade e atende um público de alta renda. Possui um ecoponto para descarte de embalagens, que são destinadas para cooperativas de catadores. Utiliza água da chuva nos tratamentos e implementou energia solar. Com a linha natural, tenta, aos poucos, convencer as clientes a abandonar as grandes marcas multinacionais de cosméticos por uma local, que usa produtos da floresta. “A indústria da moda e beleza é uma das que mais poluem. Mas também é marcada por um marketing muito pesado, das grandes marcas, que são caras e que trazem um status embutido. Convencer a mudar é difícil”, revela. 

Mesmo com todo esforço e conversa direta com as clientes, apenas 20% dos tratamentos feitos no salão são feitos com a linha própria, que usa bioativos da Amazônia, como manteiga de cupuaçu, óleo de castanha do Pará, óleo de pracaxi, entre outros. “As grandes marcas usam químicas e fórmulas que possuem petrolato, sulfato, parabeno, todos componentes químicos. Isso não é totalmente tratado depois que vão para o ralo e podem contaminar os rios e canais da cidade. Além dessa questão ambiental, tem o que mais convence, que é o resultado. Os produtos com química fazem uma maquiagem, enquanto o natural de fato faz um tratamento no cabelo”, afirma Manuela. 

Para Manuela, o fato de Belém receber a COP 30 pode ajudar a aumentar o mercado para iniciativas sustentáveis. “O complicado é que não temos nenhum apoio ou incentivo, desde a coleta do lixo separado, que o empresário precisa pagar até a criação de produtos naturais, que tem que ser tudo com esforço próprio”, afirma. 

Manuela Barbosa criou também linhade produtos com fórmulas naturais usando ativos de produtos da floresta. Foto: Marcio Nagano

O objetivo de Manuela é investir mais na linha para aumentar o percentual de uso de sua linha própria no salão, para chegar a 60% e conquistar novos mercados. “A gente convence pelo exemplo, com a conversa. Mostra o resultado, que é melhor. Estamos numa cidade da Amazônia, mas muita gente tem essa questão da floresta em pé como algo distante, que não depende dela. Mas é aí que mostramos que esses bioativos vem de uma comunidade, que coleta, separa e vende para a indústria cosmética. É uma alternativa de renda, que depende da floresta em pé e não de outras atividades, como derrubada para vender madeira”, comenta. 

A empresária destaca que a “revolução do lixo”, que o poder público tanto busca, começa com as pessoas. “É aqui com um salão, ali com um restaurante. Uma casa, uma família. A gente precisa mudar mesmo o padrão de consumo, reduzir e reutilizar. Falar é fácil, né? Precisamos ver como realizar. A gente quer uma cidade limpa, e não maquiada para um evento como a COP. Hoje tenho clientes que entendem isso, que usam produtos naturais, que trazem as embalagens e começam, com essa consciência, a fazer a diferença em casa também com outras coisas. É de pouco em pouco mesmo, mas as pessoas não veem algo sendo feito de maneira organizada na cidade e fica mais difícil convencer”, avalia.

Iniciativas isoladas devem ser encaradas como inspiração para políticas públicas

Um estudo conduzido pela pesquisadora em resíduos urbanos, Elane Botelho Monteiro, trouxe à tona com dados a opinião de Manuela. A pesquisa foi realizada entre outubro de 2020 e janeiro de 2021, envolvendo a participação da população residente em Belém, no Pará, incluindo suas ilhas e distritos, abrangendo 39 bairros e totalizando 832 participantes. O levantamento revelou que 67,2% dos entrevistados para a pesquisa sobre gestão integrada dos resíduos domiciliares em Belém acreditam que não adianta fazer separação, pois “tudo acaba sendo misturado no final”. Além disso, 83% afirmaram que não recebem quaisquer informações sobre coleta seletiva.

Para a pesquisadora, existe um esforço do poder público, mas que “não adiantará se não houver também uma atenção especial para a importância deste tema por parte da população, das empresas e escolas (públicas e privadas)”, avalia. Ela aponta ainda que a cultura de que “estou fazendo a minha parte” só poderá funcionar se for incentivada com ações mais robustas, envolvendo todos segmentos da sociedade. 

Elane Monteiro, pesquisadora, defende mais investimentos em campanhas e educação ambiental com a população. Foto: Arquivo pessoal

“Precisamos fazer com que a sociedade compreenda a relevância dos resíduos sólidos  - seja para o meio ambiente como para a geração de renda aos catadores destes materiais - e reflita acerca desta temática, conscientize-se sobre este tema tão relevante a todos e, por fim, adote práticas sustentáveis no seu dia a dia, motivando outras pessoas a fazer o mesmo”, afirma Elane. 

É nesse sentido que iniciativas isoladas de coletivos, moradores e empreendedores podem inspirar uma nova realidade que venha a ser pautada pelas discussões para enfrentar o problema dos resíduos. “Uma iniciativa sozinha não faz muita coisa em escala. Mas, o fato de outras pessoas saberem, ajuda a criar uma consciência, com mais gente percebendo que é algo necessário e cobrar o poder público, que precisa implementar algo efetivo. É sempre melhor quando isso vem de baixo pra cima e não de cima pra baixo”, destaca o pesquisador Breno Imbiriba, da UFPA.

Para Lucas Nassar, do Lab da Cidade, o aumento do debate sobre a sociobioeconomia, impulsionado com a proximidade da COP 30, é um sinal positivo, que pode ser ampliado e aprofundado. “Tem a necessidade de esforço conjunto por reduzir, reutilizar e reciclar somente na última etapa. Mas tudo começa mesmo no consumo. Tem a grande palavra de ordem, da sociobioeconomia, com iniciativas da prefeitura e do governo estadual, por exemplo. Mas, temos que pensar em toda a cadeia, não só o produto, mas também a embalagem, com material biodegradável e reduzir descartáveis, por exemplo. Isso ajuda na questão dos resíduos, mas também na economia local para pequenos produtores”, analisa Nassar.

Para ele, as experiências pela cidade realizadas de forma isolada e mesmo sem apoio devem servir como projetos, com atenção e avaliação do poder público. “A gente não muda espontaneamente o agir de uma população que sempre foi maltratada pela falta de um serviço. A população que vai fazer a diferença, mas o poder público deve promover essa cultura em escala, para de fato ter impacto”, afirma.


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