Artigo de opinião, por João Leão *
A máxima questionadora relembra a afirmação do médico grego Hipócrates (460 a.C. - 370 a.C.) que visava com ela destacar a profunda conexão entre alimentação, identidade, saúde e cultura. Embora a frase não deva ser interpretada de forma literal, em meio a processos de industrialização, de quebra dos regimes alimentares locais, de avanço dos impérios alimentares e da homogeneização das práticas do comer, ainda somos o que comemos?
Falo com a visão que parte da porção oriental da Amazônia. O estado do Pará ganhou o Brasil e o mundo com sua paisagem, sua música, seu povo e sua culinária. Mas, o mesmo estado já ganhava atenção por motivos econômicos de exploração mineral e vegetal.
No nordeste do Pará, o caminho agroextrativista se dá pela produção em monocultura da palma de dendê (Elaeis guineensis), matéria-prima do importante óleo fundamental às indústrias de bioenergia, cosmética e alimentar. A expansão do dendê diferente de seu slogan de “energia limpa” e se configura como modelo agrícola que foca na produção intensiva, trazendo consigo riscos à alimentação e impactando nas relações socioambientais.
João Leão está cadastrado no banco de fontes do Amazônia Vox. Confira aqui esta e outras fontes de conhecimento da região.
A monocultura anteriormente cultivada nas antigas fazendas de pastagem já avançou sob as florestas e as comunidades locais, englobando seus territórios e a força de trabalho, provando que a perda significava na biodiversidade e no empobrecimento do ecossistema. Seu principal fator de impacto está concentrado no uso intensivo dos agrotóxicos e na necessidade do consumo dos recursos hídricos.
A expansão da monocultura tem impacto vertical nas comunidades locais e na agricultura. Pequenos produtores que até então cultivavam na terra uma variedade de culturas, passam a enfrentar desafios ao tentar manter seu modo de vida em meio aos braços invasores. Essa competição territorial leva a perda das terras, ocasiona o deslocamento das comunidades e o enfraquecimento da variação alimentar.
Os riscos alimentares associados ao dendê se estendem à saúde e à nutrição, a diminuição da produção nas unidades familiares levam a dietas menos variadas e nutritivas. Os agrotóxicos incidentes contaminam o solo e a água, ultrapassando os territórios da empresa com seus efeitos.
Esses riscos impostos a essas comunidades passam a fazer lógica pela visão dos impérios alimentares, pois a comida é mercado para o modo capitalista de produção. A ação do capital refletida na alimentação expressa a interferência nutricional em populações pobres e periféricas, materializando uma base alimentar pobre em produtos in natura e ricos em açúcar, gordura, farinha branca e sal refinado.
A essência alimentar destrutiva toma luz aos moldes das grandes produções mundiais do capital, são assim criadas necessidades alimentares, quebrando práticas locais por meio das monoculturas, dando como alternativa os produtos do mercado dos agrotóxicos, transgênicos e dos ultraprocessados, incentivados e propagados ao consumo.
Visualiza-se nesse meio a ascensão dos impérios alimentares em vias de globalização, apresentando normas e parâmetros generalizados. A proposição estabelecida em escala global se ampara em um regime agroalimentar neoliberal, representando redes e grandes conglomerados de produção, definindo a organização dos alimentos à mesa, seus processamentos, as formas distributivas e o consumo.
Com fins definidos no papel lucrativo da alimentação, a expansão dos impérios alimentares se apoia na inclusão e exclusão, definindo ingredientes, práticas e locais de origem favoráveis às relações mercadológicas, excluindo os demais.
Entendo os fenômenos como caminhos fundamentais ao projeto do dendê no território da Amazônia paraense, um sufocamento consciente, a expulsão, a negação ao território, a conquista da terra e a inserção dessa população na lógica alimentar global, mesmo que a última etapa ocorra de forma não planejada.
Mesmo que em uma realidade do campo, a alimentação se traduza como fator crucial para a satisfação das necessidades da família produtora e como recurso vital à sua continuidade na terra, é inevitável o reconhecimento da penetração da alimentação predatória.
O “somos o que comemos” nos lembra que nossas escolhas alimentares vão para além do simples ato de comer. Elas moldam nossa saúde, nossa identidade cultural, nossas relações e nosso impacto ao planeta. A comida é parte essencial de nossa vida e reflexo de quem somos.
* João Leão é professor, pesquisador e mestrando em Geografia, acumula experiências investigativas junto à realidade das comunidades camponesas do nordeste do estado do Pará.
Foto: BBF