FOTOGRAFIA POR MARCIO NAGANO
TEXTO DANIEL NARDIN
ACARÁ, PARÁ, BRASIL – Logo nas primeiras horas da manhã, depois de virar um copo de café, Isaías Gemaque despede da esposa, Izabela Campos, e assume o comando da pequena embarcação carregada de cacau. Vagarosamente, segue para a outra margem do rio Acará, até a casa do irmão, Zeno Gemaque, para descarregar a safra. Ali, a semente do fruto é fermentada e vira a amêndoa de cacau, pronta para a torra e moagem, etapa prévia da produção do chocolate.
Foto: Marcio NaganoIzabela e Isaías Gemaque, no rio Acará, na comunidade do Acará-Açu.
O maior volume da produção de amêndoas de Zeno vai para compradores de fora do Pará. Mas, uma parte é deixada ali mesmo, num trapiche de madeira, pronta para ser recolhida por Valdirena Souza, 46, mãe de Isabela. Valdirena é uma das Guardiãs do Cacau, grupo de oito mulheres que prepara e vende o chocolate “Acaraçú”, que carrega o nome daquela comunidade, distante cerca de cem quilômetros de Belém, dentro dos limites do município do Acará. Nas prateleiras de lojas de artigos naturais ou mesmo em restaurantes sofisticados em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o chocolate “Acaraçú” – em barras de 20 gramas artesanalmente embaladas – pode parecer apenas mais um produto da Amazônia, como tantos outros. Mas, é mais do que isso. O chocolate do Acará é um pequeno exemplo de resistência ao caminho mais fácil e rápido para gerar renda na região: a monocultura, mesmo a de produtos locais, como o açaí.
A iniciativa representa uma resposta local aos impactos causados ao meio ambiente pela produção intensa de açaí dos últimos anos, garantindo renda com a floresta em pé. “A gente diz que quem compra uma barra dessa [de chocolate] não está comprando só um chocolate. Está ajudando a manter a Amazônia viva, a sustentabilidade da floresta e das famílias que estão aqui”, afirma Valdirena Souza.
O chocolate Acaraçú ilustra o processo chamado de “tree to bar”, expressão que representa a produção que vai da árvore até a barra de chocolate. Ou seja: a mesma comunidade planta, colhe, fermenta a amêndoa e produz o chocolate.
Foto: Márcio NaganoValdirena Souza, uma das "Guardiãs do Cacau", grupo que produz o chocolate Acaraçú.
Esta técnica de produção garante um chocolate natural, rico em nutrientes e sem conservantes ou outros insumos característicos da versão industrial em larga escala. As propriedades, o sabor intenso e a forma como é produzido atende um mercado específico, que reconhece o valor que está além do preço. “Esse é um mercado crescente. Mas, a produção nas comunidades é em pequena escala. Precisa ser feito assim, pois não queremos uma escala alta, industrial, que acaba incentivando a monocultura. O que valorizamos no nosso mercado é justamente o cacau nativo, combinado com outras espécies, feito na comunidade e que a gente não pode pressionar por produção”, afirma Coi Belluzzo, empresário do ramo e um dos principais compradores das Guardiãs, que envia barras de chocolate até São Paulo, de onde são novamente distribuídas para clientes em diferentes partes do país.
“Açaízação” - O açaí é reconhecido com um dos símbolos da economia sustentável baseada nos produtos da floresta. Com uma forte cadeia produtiva, gerando renda local, o Pará responde por 94% da produção nacional do fruto, que foi de quase 1,6 milhões de toneladas apenas em 2022, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Foto: Marcio NaganoJoão Carlos Rodrigues, da comunidade do Acará-Açú, que agora diversifica a produção na
sua propriedade com outras espécies além do açaí.
Além de abastecer o mercado regional e nacional, o “boom” do açaí no cenário internacional fica evidente com os números. Em 2012, o Pará exportou apenas 39 toneladas. Em 2022, foram mais de 8 mil toneladas para vários destinos internacionais, de acordo com informações do Centro Internacional de Negócios (CIN), da Federação das Indústrias do Estado do Pará (FIEPA). No entanto, a alta demanda provocou impactos na economia, no meio ambiente e na dinâmica social local.
Como gera renda imediata, comunidades ribeirinhas priorizaram a coleta e venda de açaí, em detrimento de outras espécies, inclusive abrindo novos espaços na mata, derrubando árvores para dar mais lugar às palmeiras de açaí. Este processo, chamado de “açaízação”, vem sendo alertado na região. Em artigo publicado em 2021 com esse tema, pesquisadores – entre eles Madson Freitas e Ima Vieira, ambos do centro de pesquisa Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG) – destacaram a intensificação da produção, que gera benefícios, mas também efeitos negativos, embora ainda não completamente mensurados em números.
O levantamento dos pesquisadores foi feito em uma área de 376 mil km², no Pará, em regiões de florestas de terra firme e ao longo das margens dos rios, especialmente os rios Pará, Guamá e Tocantins e algumas áreas da Ilha do Marajó. “A intensificação do cultivo do açaí altera a estrutura das espécies de plantas silvestres, particularmente a abundância de árvores, a riqueza de espécies e os padrões de dominância de espécies. A abundância de árvores e a riqueza de espécies diminui consistentemente à medida que a densidade de açaizais aumenta”, destaca o estudo.
A área do Acaraçú foi uma das regiões mapeadas pelo estudo. Lá, ao perceber os impactos com a abertura de terreno na sua propriedade para a produção exclusiva de açaí, o ribeirinho João Carlos Rodrigues passou a integrar um grupo de moradores locais do Acará que está implementando o sistema de agrofloresta, combinando diferentes espécies num mesmo local.
“Vivo há uns seis anos exclusivamente do açaí. A gente desmatou muito para plantar mais. Até acho que tirou muito, porque hoje tem árvore de açaí que está morrendo, devido à 'quentura'. E onde tirei muito, que não tem outras árvores, o açaí produz menos”, analisa João Carlos Rodrigues.
Com o replantio de outras espécies combinadas na mesma área, João já observa aumento da produtividade do açaí. “Aqui, nesse modelo de agrofloresta, pode plantar de tudo, sem exceção. Tinha árvore que nós tirávamos, achando que era incômodo para o açaí e hoje a gente sabe que não é, muito pelo contrário. Hoje estamos plantando andiroba, seringueira, cupuaçu, cacau, acerola, banana, abacaxi... tudo que é possível plantar, a gente planta porque dá certo e estamos colhendo já”, explica.
O grupo de moradores que está atuando com esse modelo foi mobilizado por Isabela Campos há quase dois anos e hoje conta com nove membros. Semanalmente, eles se reúnem para trocar experiências e apoiar um ao outro em alguma necessidade na produção. A ideia surgiu após a ribeirinha conhecer mais o modelo de agrofloresta através do cunhado, Zeno Gemaque.
Morador da comunidade, Zeno fornecia amêndoas de cacau para o pesquisador e empresário César de Mendes, que atuava no ramo de produção de chocolate e mantém uma propriedade em Santa Bárbara do Pará, distante cerca de 90 quilômetros do Acaraçú, com o modelo de agrofloresta.
“Ali conheci o que é agrofloresta. Tudo que aquele cara (citando César de Mendes) precisava para viver, ele tinha ali. Então eu vim de lá com aquela ideia, que lá era uma terra pequena perto da nossa e ele produz o dobro do que a gente”, lembra Izabela.
Izabela Campos, na área onde cultiva mudas de diferentes espécies que dão vida para o modelo de agrofloresta em sua propriedade.
Com a organização dos moradores para aumentar a produção de cacau e amêndoas, veio o próximo passo, que foi produzir chocolate ali mesmo. Para isso, um novo grupo se formou, dessa vez só com mulheres. Surgiu aí então as Guardiãs do Cacau.
"A gente aprendeu a fazer chocolate, gostou e não parou mais", brinca Valdirena, uma das guardiãs. Este ano, entre janeiro e setembro, elas já produziram e venderam cerca de 400 quilos de chocolate. A meta é dobrar em 2024, com a técnica mais aprimorada e a conquista de novos clientes fixos.
“Demos um apoio de planejamento estratégico, conexão com parceiros e apoio técnico. Os grupos foram se desenvolvendo após os diálogos que realizamos sobre sistema agroflorestal, a oficina de chocolate e fizemos várias atividades, desde a qualidade das sementes e amêndoas até o plantio de mudas", afirma Camille Lisboa, do Instituto De Mendes e mestre em ciência e tecnologia de alimentos pela Universidade Federal do Pará.
Modelo de agrofloresta é um dos caminhos para gerar renda com floresta em pé, aponta economista
Exemplos de produção local de combinação de espécies, com cultivo de cacau e "verticalização", isto é, beneficiar o cacau e a amêndoa, com a produção de chocolate, como fazem as Guardiãs do Cacau, ainda são raros. “Se queremos a floresta em pé, o sistema agroflorestal é o que melhor atende e gera mais benefícios locais e para o meio ambiente”, destaca o economista Danilo Fernandes, doutor em desenvolvimento socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Zeno Gemaque, produtor de amêndoas de cacau, movimenta economia dos vizinhos na comunidade ribeirinha.
O pesquisador é um dos autores do estudo “Nova Economia da Amazônia”, organizado pela World Resources Institute (WRI), publicado este ano. No Brasil, o Pará lidera a produção de cacau, com 49% do mercado, seguido pela Bahia, com 45%. A indústria nacional processou 93% da produção paraense de amêndoas de cacau, enquanto 6% vão para a indústria internacional, segundo dados do estudo da WRI.
Quase dois terços (65%) do processamento estão concentrados em grandes empresas, que têm atuação ou recebem amêndoas de cacau da região da Transamazônica, entre os municípios de Altamira, Medicilândia e Uruará. A maior parte da transformação em derivados de chocolate ainda ocorre fora da Amazônia, principalmente em indústrias localizadas no sul da Bahia e em São Paulo.
Para Danilo Fernandes, a cadeia produtiva do cacau deve ser acompanhada de perto, para que não se desenvolva com maior intensidade em monocultura, caminho oposto ao que se pretende em economias de baixo carbono, e acabe por reproduzir o que ocorreu com a produção de açaí. “Abrir áreas para o cultivo de plantações de cacau seria meramente agricultura e não sistemas que regeneram áreas ou protegem a biodiversidade local”, destaca.
Amêndoas de cacau plantado e colhido na comunidade, que forma a matéria-prima do chocolate Acaraçú.
Segundo Zeno Gemaque, o trabalho conjunto na comunidade tem garantido melhor renda para vários moradores. A própria produção de amêndoas aumentou com a entrega de frutos pelos moradores. Uma nova fonte de renda veio com a produção do chocolate na própria comunidade.
Em 2019, Zeno recebia o fruto do cacau de quatro moradores, produzindo 500 quilos de amêndoa. Em 2022, passou a comprar de 32 moradores próximos, que passaram a ter outra fonte de renda além do açaí. Com essa articulação, a produção foi de oito toneladas, média que deve ser mantida neste ano.
“As pessoas que são de fora e veem a palafita de madeira, no meio da floresta, acham bonito. Mas, não é bem assim. Tem que ver as condições das pessoas que moram ali. A gente trabalha duro e merece também ter conforto e vida digna”, comenta Zeno Gemaque.
Segundo ele, a produção de amêndoas e do chocolate das Guardiãs do Cacau pode beneficiar diretamente quem mora na região. “Falam muito de Amazônia, mas o recurso tem que chegar na ponta, em que mora aqui. E esse é um caminho que estamos encontrando”, destaca.
Valdirena, durante a produção do chocolate na pequena fábrica da comunidade.
Em relação aos valores, a comunidade ainda não depende apenas do cacau ou do chocolate, que representa por enquanto uma alternativa para complementar a renda. “Não dá para dizer que vivemos disso. Mas já conseguimos comprar alguns equipamentos, para aumentar a produção e isso garante um pouco mais para nossas coisas, que antes não tinha”, afirma Valdirena, das Guardiãs do Cacau.
“Agora a gente planta comida", destaca ribeirinha Izabela
Para Izabela Campos, de 26 anos, o maior ganho que a atividade do cacau e chocolate proporciona é a economia dos gastos com mercado no centro do Acará, a melhor qualidade dos alimentos que consomem e, claro, a preservação da floresta. “As guardiãs hoje têm uma renda própria e tem mais autonomia, porque dependia dos maridos, né? Agora, não. E aqui, como a gente combina espécie, já evita deixar o dinheiro da produção na cidade, pois produzimos aqui mesmo boa parte da nossa comida”, explica.
Izabela Campos, de 26 anos, moradora da comunidade Acará-Açu e uma das lideranças do modelo de agrofloresta na região.
Para ela, a maior dificuldade para ampliar a participação dos moradores na atividade é a promessa de dinheiro rápido com o açaí. “Vem gente de fora daqui da comunidade e diz que fazendo monocultura ele vai receber o dobro de dinheiro em pouco tempo. É difícil competir. As pessoas não plantam porque gostam, elas querem ganhar dinheiro, mas esquecem da qualidade de vida”, afirma.
Segundo a ribeirinha, os exemplos dos produtores do grupo que atua com agrofloresta começam a chamar a atenção de outros moradores. “Mostro que em casa, não falta nada de alimento, porque planto comida. Acho um absurdo a pessoa ir lá na cidade, vender tudo que planta e voltar com refrigerante, enlatado, embutido. Não precisa disso. A gente pode plantar nossa comida”, comenta Izabela.
Ela explica que o cacau, pelas características da espécie, favorece a combinação de diferentes tipos de plantação, sempre feita de forma consorciada. “O cacaueiro gera muita folhagem, muitos galhos. Isso é biomassa e ajuda no resgate daquele solo muito rápido. Ele é nosso principal aliado para outras espécies crescerem rápido”, complementa.
De Mendes e Isaías, na comunidade Acará-Açu, às margens do rio Acará, no interior do Pará.
É esse modelo que De Mendes defende como essencial e prático para recuperar áreas abertas como proteger propriedades que ainda mantêm cobertura vegetal e biodiversidade.
Com cinco especializações e dois mestrados em Química de Produtos Naturais e Tecnologia de Alimentos, o professor deixou as salas das universidades e investiu na produção de chocolates com cacau amazônico. Mais recentemente, deixou a produção para, através do instituto, fomentar pequenas cadeias produtivas de cacau em sistemas de agrofloresta, como ocorre no Acará e em outras comunidades onde atua, incluindo povos indígenas e quilombolas. “Eles (povos tradicionais) são os verdadeiros agentes de transformação de uma possível regeneração do planeta, da floresta”, afirma.
De olho na COP 30 - A procura por produtos da floresta, que passam por processos que não só respeitam o meio ambiente mas ajudam a regenerar a floresta, devem ganhar novo impulso nos próximos anos. Afinal, a capital paraense foi confirmada como sede da COP 30, a Conferência das Partes das Nações Unidas (ONU) para o clima, que será realizada em 2025. Por conta da alta atenção global para a região e o interesse pelos produtos amazônicos, a chamada bioeconomia deve receber ainda mais atenção.
O Sebrae local, por exemplo, chegou a criar um espaço e designar equipe específica para fomentar os pequenos negócios locais, com editais de incentivo e apoio permanente. “Nossa intenção é aproveitar esse cenário positivo para fortalecer os pequenos negócios, dando condições para que eles assumam, definitivamente, o papel de protagonistas do desenvolvimento sustentável da Amazônia, além de fomentar o empreendedorismo local”, ressalta o diretor-superintendente do Sebrae/PA, Rubens Magno.
O empresário Manoel Netto, que possui lojas que comercializam produtos amazônicos na capital Belém e tem um espaço para os produtos no sofisticado restaurante do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, compartilha da opinião e também observa um forte movimento em valorizar os produtos que tem como base a bioeconomia com apoio às comunidades locais e tradicionais. “O valor está acima do preço e que não é só uma questão de qualidade. É gerar renda no território, valorizar quem de fato mantém a floresta em pé. Acredito que já está em curso essa tendência de valorização e isso deve aumentar, como inclusive já percebemos na procura em nossas unidades”, afirma
Esta reportagem foi produzida com o apoio da Thomson Reuters Foundation. O conteúdo é de inteira responsabilidade do projeto Amazônia Vox. A reportagem pode ser reproduzida na íntegra, desde que citada a plataforma Amazônia Vox.