
População do Acre convive com histórico de inundações e enfrenta novos alagamentos
Texto e reportagem de Hellen Lirtêz, com revisão de Carla Fischer e Ruanne Lima
Fotos e imagens da reportagem em vídeo de Alexandre Noronha, com edição de Deisy Cruz Noronha e edição final de Marcio Nagano
Há mais de 50 anos, a população de Rio Branco, capital do Acre, sofre com inundações - quando o nível das águas dos rios sobem e ocupam áreas além do leito - especialmente no período chamado de inverno Amazônico, com chuvas intensas e constantes. Entre novembro a abril, as chuvas, somadas à hidrografia da região, afetam milhares de famílias. Muitas precisam deixar suas casas devido ao avanço da água e passam a depender do auxílio do poder público e da solidariedade de quem vive nas áreas não atingidas. Segundo o próprio Plano de Contingência Operacional de Enchente, elaborado pela Prefeitura de Rio Branco, as inundações e enchentes tornaram-se um problema histórico-social.
Em 2025, o cenário que já é um velho conhecido dos rio-branquenses, voltou a se repetir. Casas ficaram ilhadas por mais de duas semanas, e o Estado, mais uma vez, se viu em situação de emergência. Milhares de pessoas buscaram abrigo em estruturas improvisadas pela prefeitura, como escolas e parque de exposições, aguardando o momento de retornar às suas casas. Somente em Rio Branco, a água atingiu 816 comunidades rurais e 43 bairros urbanos, afetando mais de 31 mil pessoas.
Além de Rio Branco, outros municípios como Tarauacá, a 409 km da capital, as enchentes já atingiram cerca de 5 mil pessoas. Em Cruzeiro do Sul, a 636 km de distância, o transbordamento do rio Juruá impactou 1.650 famílias, somando aproximadamente 6.600 pessoas afetadas. Além disso, quase 140 famílias ficaram sem energia elétrica e sem acesso à água potável. Em Mâncio Lima, cerca de 300 famílias residentes de áreas urbanas e rurais também foram atingidas.
Com a elevação dos rios, a vice-governadora do Estado, Mailza Silva, declarou situação de emergência de Nível II em dez municípios do estado: Feijó, Tarauacá, Cruzeiro do Sul, Rodrigues Alves, Marechal Thaumaturgo, Porto Acre, Rio Branco, Plácido de Castro, Mâncio Lima e Santa Rosa do Purus. A medida foi tomada devido ao aumento das chuvas e do nível dos rios. O Ministério do Desenvolvimento Regional, por meio da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, reconheceu no dia 24 de março, a situação de emergência nos municípios afetados. O rio está recuando, no entanto a população ainda segue em alerta.
Na capital Rio Branco, a dona de casa Tailine Freitas, 30 anos, conhece essa realidade. Moradora do Beco do Abacaxi, no bairro Airton Sena, na Baixada da Sobral, ela, o marido e os cinco filhos enfrentam enchentes há seis anos. Sem resposta da Defesa Civil e sem endereço oficial, Tailine diz se sentir ignorada. Ela acompanhou a água pelas janelas e portas de sua casa, esperando sempre que não chovesse. A ansiedade causada pelas condições do tempo já faz parte do seu cotidiano. “É angustiante ver o rio subindo. A gente liga pedindo ajuda, mas ninguém vem. Hoje nem tentamos mais”, desabafa.
“Só de ver que precisa sair de casa, sem saber se vai voltar e encontrar tudo igual, é complicado. Porque a gente sabe que vai sair e que a casa vai continuar ali, mas, com as alagações já vividas e o tanto que já foi afetada, a gente fica com a dúvida: e se eu sair? Se eu voltar à minha casa, ainda vai estar em condições de morar?”, questionou. O único refúgio é ir para a casa da sogra, que fica em uma rua próxima que também alaga. O marido é a principal fonte de renda e trabalha como entregador em uma distribuidora pelo bairro, que também é afetado pela subida das águas.
Enchentes afetam a educação
Entre os mais impactados pelas águas estão as crianças, como Sérgio Freitas, 13 anos, filho de Tailine. Para chegar à escola, ele enfrenta uma maratona diária pela lama, já que seu bairro não tem pavimentação, iluminação pública ou saneamento básico. Nos dias de alagamento, precisa atravessar a água a pé. “Para quem mora em rua pavimentada é mais fácil, porque vai normal, mas para nós aqui é muito melado. Ali na frente é cheio de lama, o pessoal quase não roça, fica cheio de mato”, relata. Com esgoto a céu aberto, a água da enchente carrega doenças e impede os jovens de frequentarem a escola, atrasando seu aprendizado e aumentando a evasão escolar.
Outras crianças da região passam pela mesma situação, como Paulo Oliveira, 9 anos, que se vê obrigado a escolher entre atravessar a água contaminada ou perder mais um dia de aula. Em 2025, as enchentes alteraram o calendário escolar de Rio Branco, transformando salas de aula em abrigos para as famílias desalojadas. A família de Paulo também precisou buscar o abrigo improvisado. “Aqui está difícil para nós. Não tem como ficar aqui numa alagação dessa”, lamenta.
A contradição da água no chão e torneiras secas
Enquanto as ruas estavam alagadas, a capital ficou sem abastecimento de água. As duas Estações de Tratamento de Água (ETA I e II) de Rio Branco foram paralisadas após o Rio Acre ultrapassar a cota de transbordamento (14 metros) após uma enxurrada de cerca de 22,8 milímetros. A correnteza do Rio Acre levou a bomba flutuante da ETA até as margens do bairro da Base. Conforme a informação do Serviço de Água e Esgoto de Rio Branco (Saerb), aproximadamente 300 mil moradores ficaram sem água por cerca de três dias, o que corresponde a cerca de 75% da população da cidade, estimada em 387 mil pessoas. Para lidar com a falta de água, muitos recorreram à compra de água mineral para banhos e para manter a rotina doméstica.
Soluções sustentáveis em pauta
Rio Branco é uma das poucas capitais brasileiras que possui um Plano Municipal de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima desde de 2020. O documento detalha o perfil das emissões de gases de efeito estufa do município e projeta cenários até 2040, identificando desafios e oportunidades. No entanto, quatro anos depois, sua implementação ainda é limitada. As soluções propostas incluem a atualização do Plano Diretor para adaptação às novas realidades climáticas, normas para construções sustentáveis e a ampliação do sistema de saneamento básico. Entre as ações estratégicas, destacam-se a implementação do Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, a elaboração do Plano Municipal de Drenagem Urbana e a universalização do acesso à água e esgoto.
O Acre e a ruptura climática: o que a ciência diz?
O Estado enfrenta enchentes frequentes, resultado das mudanças climáticas e do desmatamento. A falta de planejamento urbano e a ocupação desordenada de áreas de risco agravam a situação. Para muitos moradores, as enchentes já não são mais eventos isolados, mas parte de um ciclo de perdas e recomeços.
Nos últimos anos, as enchentes têm sido cada vez mais intensas e recorrentes. Desde 1971, quando começaram a ser registradas as medições do Rio Acre, o estado tem enfrentado essas inundações, evidenciando a falta de adaptação climática nos últimos 50 anos. Entre 1987 e 2023, o estado registrou 202 eventos climáticos extremos, com tendência crescente no número de eventos extremos e na ocorrência simultânea de vários eventos no mesmo ano desde 2010. Vinte e um decretos de estado de emergência e calamidade pública foram emitidos, sendo as inundações os eventos mais frequentes. Rio Branco e Cruzeiro do Sul registraram 14 e 21 eventos extremos, respectivamente, o que corresponde a um evento a cada dois anos.
A pesquisadora Sonaira Souza, coordenadora do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGAMA) da Universidade Federal do Acre (UFAC), tem dedicado sua carreira a estudar os impactos das mudanças climáticas no Acre. Ela observa que desde 2010, o estado passou por uma ruptura nos padrões climáticos, com a intensificação de eventos extremos. “Antes, as enchentes não ocorriam no mesmo ano das secas. Hoje, temos chuvas intensas que podem acumular em um ou dois dias o que antes seria a precipitação de um mês”, alerta.
Segundo a Habitat Brasil, eventos climáticos extremos, como enchentes e secas intensas, têm aumentado devido às mudanças climáticas e podem gerar danos ao meio ambiente, à saúde física e mental das populações afetadas. Um estudo da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) revela que desastres naturais causaram prejuízos de R$ 1,6 bilhão no Acre entre 2013 e 2023. Além disso, um levantamento do Governo Federal, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), apontou que 17 dos 22 municípios acreanos são vulneráveis a desastres ambientais, como deslizamentos e enchentes.
Sonaira Souza alerta que a redução das emissões de gases de efeito estufa é essencial para conter o agravamento das mudanças climáticas. Por isso, governantes e sociedade devem adotar medidas estruturais e emergenciais. “Os políticos precisam entender que eventos extremos não são mais ocasionais, são recorrentes. Áreas de risco não devem ser ocupadas e precisamos de políticas públicas que garantam moradia segura e infraestrutura resiliente”, destaca.
A pesquisadora sugere que a mitigação e adaptação climática devem incluir a remoção de pessoas das áreas de risco, melhorias na drenagem, calçamento para evitar deslizamentos e a construção de trapiches ou casas suspensas para garantir mais qualidade de vida. Ela também enfatiza a importância de ouvir as comunidades afetadas para entender melhor os impactos das mudanças climáticas no cotidiano delas. “O padrão de antes já não é mais o de agora. Antigamente, quando um passarinho cantava, era um sinal de que provavelmente ia chover. Essas crenças populares, essas observações da natureza, que antes faziam sentido, já não são mais válidas hoje em dia”.